quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A MORTE DA RATA DA MENINA ISMÉNIA

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Cruzei-me com ela hoje de manhã na Travessa da Solidão. Caminhava de ombros caídos, cabeça enterrada pelo tronco já com tudo a sofrer a lei da gravidade e a apontar o chão mas ainda aproveitável para um velho sozinho como eu. As nossas escolhas directas são sempre em função do que podemos oferecer em troca. Quando o tempo já pesa de mais resta a experiência, mas esta não é muito quantificável quando a máquina apresenta fissuras na carroceria. Então deixa-se de olhar à estrada e rola-se sobre o que nos cai no ângulo de visão.
Os seus olhos, habitualmente brilhantes como Sol a pique de um qualquer meado de Agosto, estavam desfocados e envoltos em nevoeiro opaco e, se não me enganei, até parecia que chorava. Estranhei esta tristeza latente. Há décadas que vejo a menina Isménia como um centro de vida e profusão de luz. Sempre que passava por mim respondia aos meus cumprimentos e avanços de adulador barato com fair play –pelo menos até à iniciativa legislativa do Bloco de Esquerda tentar criminalizar o piropo. Depois disso comecei a ter medo e engoli completamente a vontade libidinosa de me atirar descaradamente a esta e a outras belas cotas e passei a assobiar para o ar, na rua, e a ver o Canal Playboy, lá em casa. Desta vez nem um “b’dia” saiu dos lábios bem desenhados, carnudos e marcantes no seu rosto lindo. Voltei para trás e, como dissesse ó filha que és tão boa!, atirei: ó menina Isménia, o que é que se passa?
Como se fosse um elefante a içar uma das patas, lentamente levantou as pestanas e a seguir os seus olhos negros e fitou-me intensamente. De tal modo que até senti um baque cá dentro do peito e dei por mim a pensar que já tinha ganhado o mês. Naquela vozinha melosa de gatinha superprotegida, atirou: “estou com um grave problema, senhor Luís! É com a minha rata!”. Abri os olhos de espanto. Confesso que não estava à espera! Não é por me gabar mas sou uma pessoa muito solidária e gosto de ajudar. Ora, se bem entendi, estava perante uma acção que faria de bom grado. Em boa verdade tudo o que ainda mexia deu em sorrir a meio rir e retorqui: não se preocupe, menina Isménia, eu trato-lhe da rata! Sente falta de carinho, não é? Joguei assim como se fosse dono da situação e tivesse tudo sobre contolo. “Não é nada disso, alma de Deus! Por que é que vocês, homens, são tão estúpidos? Que coisa! Só pensam nisso! Até parece que uma mulher não tem mais nada para oferecer. Caramba!”.
Mau, mau! Comecei a sentir a terra a fugir diante dos meus olhos e a não saber o que haveria de dizer. Estava visto que tinha enterrado os pés e as mãos em busca de um sossego para uma das minhas cabeças que andava tão inquieta. Por sorte ela continuou. “Falo da Mariquinhas, a minha rata de “estimação”! Sabe o que é uma rata, um animal? Sabe? Ela anda lá por casa já há uns meses largos. Embora nos vigiássemos mutuamente, havia ali um tratado tácito. Aparentemente, ela não me ir à dispensa, satisfazendo-se com umas migalhas, e eu não a agredia. E este tratado de paz até correu bem… até ontem. Então não quer lá ver o senhor que apanhei a filha da mãe a comer-me o queijo? Eu sou uma mulher calma e assertiva –penso que o vizinho sabe!-, mas quando se me chegam os azeites passo-me. Então, quando vi a desgraçada a comer-me o queijo, que guardo religiosamente para o meu Felisberto, fiquei tão furibunda que não me controlei. Puxei a culatra atrás, como quem diz o meu melhor pontapé de penalti e zumba! Foi mesmo em cheio! A gaja bateu com os cornos na parede que aterrou logo. Foi então que caí em mim. Eu tinha molestado um animal de estimação. Estou preocupadíssima, senhor Luís! E se vou presa? A partir de hoje a lei criminaliza os maus-tratos quemsem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão. E agora?”


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