quinta-feira, 19 de junho de 2014

EDITORIAL: A DISCRIMINAÇÃO DO DIREITO AO DESCANSO



“Gostaria de denunciar o barulho DIÁRIO de música emitida na Praça da República depois da meia-noite que incomoda todos os moradores da zona e ruas limítrofes sendo mais grave agora na altura dos exames dos ensinos Secundário e Universitário. Nos últimos dois dias a música tem recomeçado às 00h50, terminando só muito depois das 02h00. Tenho telefonado todas as noites à PSP a reclamar e já escrevi ao Presidente da Câmara a pedir que a música termine às 00h00 para que todos possam ter uma noite descansada e possam enfrentar os dias de trabalho –Carlos Dias.”

Segundo a imprensa do último mês de Março, o Governo prepara para breve a total desregulamentação da actividade mercantil. Se tal terramoto legislativo avançar, prevê-se a liberalização total de horários para cafés, cervejarias, discotecas e casas de fado –que até agora só podiam estar abertas até às quatro da manhã. Este fenómeno de libertar o licenciamento prévio das áreas económicas por parte do Estado não é apenas em Portugal –já começou com o “Simplex” de Sócrates- mas em toda a Europa e seguindo os Estados Unidos. Basta atentar na manifestação de taxistas, há uma semana, em várias cidades europeias e incluindo Lisboa. Neste caso, só para lembrar, está em causa a possibilidade de ser instalada uma aplicação no telemóvel, o Uber, e que permite que um qualquer particular com viatura própria, sem grandes dificuldades de certificação e admissão, passe a transportar passageiros e substituir os profissionais de carros de aluguer. Se outras premissas não estivessem em causa, como por exemplo o pagamento de impostos, basta recordar a dificuldade que os profissionais da condução têm para obter um alvará.
Dá para perceber, portanto, que estamos perante tsunami na relação entre as corporações e o Estado. Ou seja, para além de assistirmos à evidente discriminação negativa das classes profissionais, a estas continuam a ser exigidas obrigações de licenciamento absurdas. Urge perguntar, perante este “laissez faire, laissez passer”, onde se vão recolher impostos?
E podemos interrogar onde quero eu chegar com este arrazoado? O que tem isto a ver com a reclamação do cidadão Carlos Dias sobre o ruído na Praça da República, e postada no Facebook? Vou explicar. É que, em face da instalação do ecrã gigante para ver o Mundial e autorização das barracas e roulottes de farturas na vetusta praça pela autarquia, tirando outras agressões à dignidade daquele largo, estamos perante uma inqualificável discriminação e falta de respeito pelos hoteleiros ali estabelecidos. O que foi implantado no terreiro em frente do antigo café Mandarim foi uma confusão de mau gosto, onde impera o mau-ambiente, pior que a antiga feira dos 23, quando funcionava junto à Escola de Silva Gaio.
Já há muitos anos, desde a entrada de Carlos Encarnação para a presidência, que edilidade escandalosamente passou a desvalorizar os moradores e a elevar os investidores –basta lembrarmos a luta de Vitália Ferreira, na Rua Padre António Vieira, contra um bar da Associação Académica de Coimbra. Trazemos à liça o barulho dos concertos da Queima das Fitas, durante uma semana, para quem reside na margem esquerda. Recordamos também o que se passa na Alta e junto ao Largo da Sé Velha.
Perante estes inglórios combates, e de outros tantos na cidade que não são chamados aos jornais, contra o desmesurado ruído pergunta-se: mas a Câmara Municipal não tem obrigação de harmonizar os interesses entre todos? Lá ter tem, só que, pelos vistos, não quer saber. Mas, prosseguimos nas interrogações, não quer saber porquê?
A meu ver, por dois motivos históricos: o desenvolvimento e o circo. Já desde a Revolução Industrial que se pensa que o desenvolvimento assenta fundamentalmente no fabrico de riqueza, trazendo mais emprego e bem-estar. Se é verdade o que se afirma, ao mesmo tempo, é também uma mentira. A riqueza só contribuirá para o progresso se, em equilíbrio, conseguir gerar uma felicidade interior tanto quanto o conforto exterior. Ora para atingir esta estabilidade não se pode perder de vista o descanso necessário para uma vida feliz. No contraproducente, nas últimas décadas o novo-riquismo tomou conta de todos nós. Pelas preocupações perdemos o desligamento mental necessário, o cultivar o silêncio, para ler um livro, manusear um jornal impresso em papel. A crise da imprensa –como outras crises-, contrariamente ao que se afirma, não assenta somente na mudança de hábitos. O homem, que é um ser comodista e de rotinas e pelas obrigações criadas contratualmente, deixou de ter tempo para ter tempo de ler. Por isso mesmo recorre a extratos na Internet.
A autarquia de Coimbra, tal como outras no país, licencia empreendimentos que mergulham na madrugada e desaguam na manhã seguinte porque é uma forma de manter os cidadãos, sobretudo os jovens, ocupados –sabemos que a reflexão só é possível para quem pára. Por conseguinte, os sistemas políticos sempre tiveram receio de quem pensa. Sendo assim, portanto, nada melhor do que dar música e entretenimento ao povo.


TEXTOS RELACIONADOS

(Para ler, clique em cima)



Sem comentários: