LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: INDIGNIDADE"; "33 ANOS DEPOIS..."; "FALECEU A SENHORA MARIA DAS TINTAS"; "O VELHO RELÓGIO PARADO DA ESTAÇÃO NOVA"; e "CAÍDA EM COMBATE"
(Imagem retirada de aqui)
REFLEXÃO: INDIGNIDADE
Conheço bem o homem que está sentado à minha
frente. Há um mês que não o via desde quando encerrou o seu estabelecimento e,
como menino envergonhado por ter sido apanhado em falta, recolheu às divisões
da solidão, bebendo os conselhos na amargura e procurando forças nos
interstícios da mente para encarar os olhos de quem se cruza com os seus. Na
longa noite de insónia e, certamente, pedindo ao silêncio que lhe trouxesse por
favor um momento de sono, imagino o matraquear constante das suas interrogações:
“porquê? Porquê? O que fiz de mal? Tenho
81 anos, trabalhei durante os últimos setenta anos. Sempre cumpri com todos.
Porquê…?”
O comerciante de olhos encovados e encravados
em olheiras negras, que sempre preferiu torcer que quebrar, parece-me um
carvalho centenário alquebrado pelo peso enorme dos seus ramos e resignado à
sorte que o tempo lhe destinou. No meio de um lamento com olhos humedecidos
enfatiza: “Embora as minhas forças
estejam debilitadas, estou muito bem psicologicamente. Se alguém me desse
trabalho…”
33 ANOS DEPOIS…
Não se sabe se Cristo, quando morto pelos
Romanos e pregado na cruz, teria ou não a ver com isto. Mas que é estranho é. Lá
isso é! A notícia vem plasmada no Diário de Notícias: “A Direção-Geral do Património Cultural iniciou hoje um processo para
desclassificar a capela-mor inacabada da Igreja de São Domingos, em Coimbra,
monumento nacional cujo espaço está ocupado por lojas de um centro comercial.” –Há
cerca de 33 anos, acrescento.
Não se contesta a verdade dos
factos. Confessamos os nossos pecados arrolados na acusação. O que invocamos em
nossa defesa, perante a imputação e subsequente desclassificação da
Direcção-Geral do Património Cultural, é que estamos perante uma decisão que,
pelos anos passados, já deveria ter prescrito e, como prémio de longevidade,
manter-se assim “ad eternum”. Com
sinceridade, esta iniciativa não lembra ao diabo e muito menos ao Judas, o tal
que encravou o Mestre da igreja Católica Apostólica Romana.
No mínimo, este processo de
desclassificação é irónico. Tendo em conta a recente classificação da Rua da
Sofia como Património Mundial da Unesco, vir arrolar este caso agora, parece
intentona de alguém que não vai à bola
com a cidade dos estudantes.
Por outro lado, poderemos
perguntar: então e são precisos 30 anos para chegar a esta conclusão? Bom, nada
se estranha nesta Nação coxinha e com gente que, sem ofensa, parece atrasada…
no tempo.
FALECEU A SENHORA MARIA DAS TINTAS
No tempo em que eu pintava as minhas paredes –porque
esta época de crise associada leva tudo, até a vontade de fazer seja o que for,
e transforma-nos em meros espectadores do vazio envolvente- era na loja do
Amaral e Delgado, Lª, na Rua dos Oleiros, que ia comprar as tintas. Ao balcão,
como árvore mestra na floresta, estava a atender a senhora Maria Marques
Nogueira Guerra Amaral. Simpática, de olhar vivo e introspetivo, falava
calmamente e sempre com grande acerto. Para além de ser uma mulher muito
bonita, cuja idade nunca apaga os traços do rosto, tinha uma graça imanente que
é impossível descrever aqui. Sempre que me via na loja ou fora dela fazia-me
uma grande festa. Por força desta tempestade que nos assola, em que estando por
vezes na mesma rua ou ao lado parece que criámos ilhas isoladas entre todos,
deixei de a ver há cerca de dois anos. Soube por uma vizinha da Rua dos Oleiros
que, “devido ao aumento desmesurado da
renda e poucas vendas que partilhassem os custos”, encerrou mais ou menos
nessa data e as tintas, com a mesma marca, passaram a ser vendidas noutro ponto
da cidade, na zona da Relvinha. Também, por coincidência ou não, nessa altura,
veio a sofrer de uma doença incurável –baseado
em algumas experiências, já há muito que tenho uma teoria: comerciante septuagenário
que encerre a sua loja em dificuldades dura apenas, e no máximo, três anos.
Talvez esteja a ser cínico ao escrever isto assim, desta maneira e a frio. Mas
o estabelecimento constitui para o profissional do comércio a extensão física
do seu corpo e o lidar com os clientes a razão da sua existência, o seu
espírito. Se desaparece o primeiro, o estabelecimento, deixa de haver lugar
para a alma e em pouco tempo tudo se apaga.
Fui surpreendido pela notícia, na necrologia do
Diário de Coimbra, da morte da senhora Maria Amaral, de 73 anos. Repetindo, como
a conhecia bem e tinha com ela uma tão grande relação de simpatia e amizade não
poderia deixar de escrever estas singelas palavras de apreço e homenagem. É com
tristeza que vemos partir mais um de nós, que nas últimas décadas nos fez
companhia e ajudou a alegrar as nossas vidas. Neste caso, a Rua dos Oleiros
perde uma pessoa estimada e nós, vizinhos, sentimos um vazio inexplicável.
À sua família, marido, filhos e
restante, em nome da Baixa, se posso escrever assim, os nossos sentidos
pêsames. Gostámos muito de com ela ter privado. Foi um gosto. Até sempre,
senhora Maria!
O VELHO RELÓGIO PARADO DA ESTAÇÃO NOVA
O relógio da Estação Nova permanece parado,
morto e sem vida, há muito tempo. Estará em greve de zelo, como que a mostrar
que a cidade nem anda para a frente nem para trás? Estará avariado? Quem vai
responder a estas questões é Hermínio Freitas Nunes, proprietário da
prestigiada firma de concertos de relógios de Campanário e de Torre e com sede
na Marinha Grande “TicTac Temporis”.
Hermínio é um dos poucos especialistas nacionais que operam nesta área de
conservação e restauro de relógios mecânicos e preocupado com a memória futura.
A sua inquietação vai muito além do artesão reconstrutor; é um restaurador de
obras de arte do passado, tentando prevenir o presente, para que a história não
se separe dos objetos físicos e os vindouros saibam e tomem consciência de que
a modernidade não assenta em cortes horizontais mas sim numa linha de continuidade.
Só se compreende que Freitas
Nunes seja mesmo assim, um artesão de rara sensibilidade, sendo ele mesmo a
trazer-me a indignação do relógio por ele reconstruído em 2009 permanecer
naquela apatia, num desleixo inconcebível, e que se incomoda uma maioria a ele
toca muito mais. Vamos ler o lamento pungido de Hermínio Nunes na primeira
pessoa:
“Em 2009
foi-me adjudicada pela Refer Telecom a obra de restauro deste relógio, que é um
das mais pequenas máquinas de torre do mundo, desenvolvido por Paul Guarnier
(1801-1869) exclusivamente para fachadas das grandes gares ferroviárias da
época. Além de França, sei que exportou estes marcadores de tempo para os
caminho-de-ferro portugueses, ingleses e belgas. Desconheço se além deste,
restaurado na minha oficina, existe mais algum similar ainda em funcionamento.
Por contrato, e incluído no preço adjudicado na altura, fiquei
responsável pela manutenção e funcionamento deste velho marcador de tempo. Acabei
por me apaixonar por este velho engenho de registar horas e sem que nunca fosse
solicitado para o efeito, por minha iniciativa, sempre que venho a Coimbra lá
vou dar um abraço com os meus olhos ao temporizador. Por coincidência ou não,
sempre que vinha à cidade constatava a sua paragem e lá ia eu pedir a chave e
dava corda ao meu protegido. Este, como a mostrar-me o seu reconhecimento
parecendo sorrir de contentamento lá das alturas, ficava a trabalhar noite e
dia. Até que há cerca de dois anos para cá deixei de poder aceder à torre. Ou
porque não se sabe quem é o responsável –o anterior já se aposentou-, ou porque
não sabem da chave, e sei lá de quê mais, a verdade é que o relógio jaz ali
inerte e abandonado. E isto dói-me muito, sabe? No fundo, manter uma obra
daquela importância histórica e que passou pela minha oficina naquele estado de
desprezado, é um descrédito para o meu bom nome. Repito que, financeiramente,
não ganho absolutamente nada em fazer isto. Com muito pesar porque me fere a
alma, praticamente já desisti de dar vida àquela velha máquina, de valor
incalculável e raro espécime museológico. É triste, não é?”
CAÍDA EM COMBATE
Encerrou
no fim da última semana a frutaria Dulcínia, na Rua das Padeiras. Com um projeto
de investimento subsidiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional
(IEFP) aos desempregados, e aberto em novembro último, a Dulcínia Alves,
perante as evidências de poucas vendas e apercebendo-se de que a sua vida
estava a complicar-se, dia-após-dia, optou por encerrar.
Vamos ler as suas declarações,
que, conjuntamente com o marido, durante sete meses foi nossa vizinha e aqui
deixou muitos amigos: “Olhe, tivemos
mesmo de optar pelo fecho da loja. Como se estivéssemos sobre areias movediças,
estávamos a enterrar-nos cada vez mais. Nos últimos meses do ano passado,
novembro e dezembro e até ao primeiro deste ano em janeiro foi bom e deu para
compensar. A partir de fevereiro foi um “Deus nos acuda”! Um descalabro
completo! Mas teve mesmo de ser assim! Não havia mais nada a fazer! Chorei
muito neste último Sábado a retirar as nossas coisas. Foi um sonho que se
apagou. É muito triste, sabe? E bolas, eu tinha experiência do ramo! O que se
passou é que as pessoas, como subitamente, deixaram de comprar. Entravam na
loja, viam os preços e quando eu interrogava se podia ajudar respondiam que não
havia o que queriam. Nada disso! Não tinham dinheiro, era o que era! Ainda
baixámos a nossa margem até onde era possível mas chegou a um ponto que era só
mesmo trabalhar para aquecer!
Gostava de deixar aqui um alerta para os jovens: muito cuidado nestas
aventuras comerciais. Não façam como eu, que me atirei de cabeça e agora, como
não consegui cumprir com o IEFP vou ter de devolver a verba concedida
anteriormente. Felizmente tive a sorte de arranjar um trabalho na Recolte –a
empresa que recolhe os detritos urbanos na cidade- e assim, já sei, uma pequena
parte do meu salário vai para a reposição. Perdi muito com este investimento.
Mas e adivinhar? Se a gente soubesse o que ia acontecer nunca se metia em nada!
É ou não é?”
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