LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O MEDO DE AMANHÃ"; "SOS: APOIO PSICOLÓGICO PARA OS COMERCIANTES"; e "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A GAITEIRA"
REFLEXÃO: O MEDO DE AMANHÃ
Há uma
semana, na sexta-feira passada, foi noite de marchas populares nesta parte
velha da cidade e milhares de visitantes pisaram este chão, se calhar, a
primeira vez nos últimos seis meses. Como em certames anteriores, este género
de acontecimentos é a sorte grande para os hoteleiros da Baixa e a terminação
para as lojas de comércio. Apesar deste prémio mínimo de consolação, muitos
comerciantes com quem falei gostaram desta festa e, para completar a cereja em
cima do bolo, até venderam e lhes deu alento para justificar o gasto de eletricidade.
Queixas houve algumas, essencialmente dos vendedores das ruas estreitas.
Lamentavam-se eles de que a distribuição do cortejo, tal como nos últimos anos,
continua a ser irregular. Segundo duas senhoras comerciantes com quem falei, em
coro, diziam: “não se admite que sempre
que há eventos na Baixa, quer promovidos pela autarquia quer pela APBC, Agência
para a Promoção da Baixa de Coimbra, continuem a ser concentrados nas ruas de
cima. É um desrespeito pela nossa participação. Por exemplo, ontem, aqui na Rua
Eduardo Coelho, de um total de quinze, passou cá apenas uma marcha. Parece que
há uma intenção deliberada de dividir esta parte antiga entre bons e maus –como
se aqui fosse o “gueto” dos pobres!”
É Sábado, faltam poucos minutos para o
meio-dia num qualquer relógio da Baixa. Entro na antiga loja de ferragens,
vazia de clientes onde tudo é velho a começar pelo proprietário, com cerca de
sete décadas, e até os dois empregados mais novos, na casa dos “trinta” e “quarenta”,
me parecem mais envelhecidos, em idade dobrada, do que o patrão. Depois de
satisfazer o meu pedido e eu ter pago, atira o veterano do balcão: “isto é que vai uma vida? Já viu? Ontem
andaram por aqui milhares de pessoas. Hoje é Sábado e não se vê ninguém! Para
onde foram? Será que a solução é realizar festas todos os dias? Mas como é que
podemos dar um porco a quem nos dá um presunto? O que havemos de fazer, senhor
Quintans?”
Naturalmente que não tive resposta para dar às
angústias sentidas e refletidas nos traços vincados da fronte do experimentado
e agora frustrado vendedor. Se eu soubesse, espalharia ao mundo a boa-nova e eu
seria o primeiro a testar a solução. Tal como uma grande maioria sinto-me muito
apreensivo e depressivo com o estado letárgico da economia local e nacional.
Apesar dos anúncios na imprensa do disparo da busca de bens duradouros, os
sinais não são visíveis. Não há procura interna que se enxergue a olho nu. A
oferta há muito que, pela falta de dinheiro em circulação, reflexos da quebra
de rendimentos, submergiu a carência de necessidades e fez emergir um novo
consumidor oportunista, dividido entre duas aflições: a satisfação da sua
carência e o aproveitamento alheio. É um comprador frio, insensível, que -exatamente
como o vendedor- repristinando o seu lado mais primário egoísta, no fio da
navalha, tenta salvar-se, sobreviver, passando pelo intervalo dos pingos da
chuva. É certo que somos todos consumidores e só nesta qualidade, enquanto
tais, conseguimos pensar. Ou seja, muito dificilmente um comprador se projeta
mentalmente e toma o lugar do vendedor. Os consumidores, enquanto massa
anónima, abstratamente, são constituídos maioritariamente por pessoas sem afetividade
social, em que todos os meios justificam sempre os fins –daí, provavelmente, o
aforismo “amigos, amigos, negócios à
parte”. Ora, dizia Pessoa que “o
mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é
a ausência de sensibilidade”. O que tomando à letra o pensamento do grande
escritor e filósofo nos remete inevitavelmente para o individualismo
isolacionista –o homem que intrinsecamente é um ser social, de sociedade
gregária, e ao mesmo tempo associal, eremita e egocêntrico, neste tempo de
salvação do corpo, inclina-se perigosamente para este último, para o egoísmo.
Isto é, contrariamente ao que se pensa, esta crise económica e social não está
a espalhar os valores da solidariedade e da partilha mas antes o seu contrário.
E então nesta pretensa análise, chegados aqui e tentando dar resposta ao velho
comerciante, poderemos interrogar: como dar a volta?
Nos últimos quarenta anos passámos de uma
sociedade atrasada e maioritariamente pobre -mas auto sustentável porque
produtiva, poupada e racionalizante de meios- para uma coletividade
desenvolvida mas planeada como dependente do exterior, quer nos bens perecíveis
–extraídos na agricultura- quer nos bens duradouros –produzidos nas fábricas-,
assente no desperdício, onde a reutilização tem pouco relevo. Como entender que
diariamente se coloquem no lixo toneladas de garrafas de vidro, de latas de
folha, de madeiras, de lixo eletrónico, de artigos diversificados e não se
intensifique a sua recuperação? Para colmatar o défice de produção nacional, ao
mesmo tempo que se travestia a Globalização de religião e se transformava
Portugal em nação de serviços e ponte entre o “import-export”, criou-se um consumidor dependente e obsessivo pelo
modernismo absolutista. Agora, sem dinheiro e com a procura no vermelho há
vários semestres, depois de estarmos todos metamorfoseados em vendedores onde
vamos desencantar compradores? À China?
SOS: APOIO PSICOLÓGICO PARA OS COMERCIANTES
O homem de meia-idade que tenho à minha frente
chora desalmadamente. Aqueles olhos avermelhados, como quem passou a noite
inteira sem pregar olho e a matutar numa existência sem horizonte, estão
circundados com umas intensas olheiras negras. Naquela barba de dois dias, a
fazer lembrar um campo de trigo a emergir da terra negra vergastada pela
canícula, duas lágrimas teimam em rolar lentamente. Conheço-o bem. Há muitos,
muitos anos que é comerciante na Baixa da cidade. O que sempre me impressionou
nele foi a sua postura altiva, a fazer lembrar a palmeira solitária e ereta de
um jardim à beira da estrada. Pareceu-me sempre uma fortaleza inexpugnável. A
pessoa que se contorce ao meu lado com amarguras de alma não tem nada a ver com
o comerciante que conheci. O homem com quem troco umas palavras de alento, em
metáfora, é o destroço de um navio que foi rei dos mares. É uma sombra de
alguém que me recorda alguém. As suas palavras saem-lhe entrecortadas em
farrapos de aflição: “não aguento mais!
Estou esgotado! Com o meu negócio a falhar diariamente, sinto a minha vida como
um castelo de cartas a tombar sobre uma mesa de jogo. Por inerência, a minha
vida familiar está desfazer-se e o meu casamento de décadas a esbater-se em
frangalhos como onda na areia da praia. Faltam-me as forças. Não aguento!...Não
aguento…! –mas não escreva nada sobre isto! Promete? Promete…?”
Esta descrição pode até parecer inventada mas
é mesmo real. Nos últimos tempos, visto com os meus olhos de sensibilidade, dá
para verificar que muitos comerciantes, homens e mulheres com quem falo,
desatam num pranto inexplicável. A depressão, como manto negro de solidão,
tomou conta das suas vidas. É visível que se sentem perdidos nesta imensidão de
tempo sem futuro à vista. Alguma coisa deve ser feita, e com urgência, dentro
do campo psicológico. Já há dois anos escrevi sobre este assunto e nada foi
feito. Algumas entidades com responsabilidade social, entre elas a Câmara
Municipal de Coimbra, antes que ocorram tragédias neste sector profissional,
deveria mandar investigar e sobretudo pedir ajuda à Faculdade Psicologia da
Universidade de Coimbra.
Bem sei que sou eu a escrever –e nem sequer
tenho qualquer formação na área- e valerá o que valer, mas, pelo que constato
todos os dias, estou deveras preocupado. Fica a chamada de atenção.
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: A GAITEIRA
É uma encantadora mulher, que está para a vida
como traineira está para o mar. Se tem de ser, tem de ser, barco à água! Já atravessou ondas alterosas, tornados de vã
esperança, que a fizeram temer o futuro para tocar o horizonte. Os seus olhos
negros, como proa apontada ao longínquo, carregam fardos de nostalgia e
solidão. E ela pensa nisso? Ora, ora! Isso é que era bom! Dar confiança à
tristeza? Alegria precisa-se, mesmo que se vá buscar ao fundo da alma, às catacumbas
desconhecidas de um ser que parece
vagamente nosso conhecido. Por isso mesmo, como para enxotar a melancolia, faz
da cantiga um tónico rejuvenescedor anímico. Cada resplandecer da aurora, cada
fio de luz, é um milagre de Deus que vê nascer diariamente para ir trabalhar
atravessando a madrugada. É uma mulher do povo. Uma heroína desconhecida. Um
modelo popular de que ninguém fala, ninguém sabe nada desta mulher-mãe-avó, um todo-o-terreno
onde da fraqueza faz alento e da força um Sol de verão. Esta senhora de que,
com gosto, vou deixar contar um pouco da sua história, dá pelo nome de Celeste
Correia e faz o favor de ser minha amiga. “Canta”
Celeste!
“O que hei de dizer, Luís? Sou uma pessoa humilde, tu sabes. Tenho 66
anos e, para andar de cabeça erguida, trabalho, trabalho, como se a labuta
fosse o meu caminho e o meu destino, ao mesmo tempo. Nasci na Sé Nova, na parte
alta da cidade, num berço remediado. Os meus pais viviam razoavelmente mas
entendiam que o lugar da mulher era em casa e, por conseguinte, só precisava de
aprender costura. E foi o que fizeram comigo. Apesar da professora primária ter
salientado os meus dotes para as letras não foi suficiente para os demover. Aos
9 anos estava a trabalhar numa modista, na Rua das Padeiras. Aos 19 anos casei
e o meu falecido marido, Manuel Dourado, que durante cerca de uma dúzia de anos
foi presidente da Junta de São Bartolomeu, entendeu também que o meu lugar era
em casa a labutar… na costura. Tive de mandar um grito de Ipiranga para poder
trabalhar fora. Entretanto fiquei viúva e o trabalho, como manto de inverno e
aderindo à minha pele, nunca mais me largou. Preciso de estar permanentemente
ocupada. Ao abrigo do Programa Novas Oportunidades concluí o 9.º ano e agora
estou na ESEC, Escola Superior de Educação de Coimbra, a fazer um curso de
informática. Talvez também por isso mesmo, sou uma pessoa de causas. Ajudar
quem precisa é para mim um prazer inexplicável. Quando me chamam vou para o
Banco Alimentar. Vivo um dia de cada vez. Desde que tive uma ameaça de cancro
da mama, passei a encarar a existência como uma dádiva divina e não um peso.
Adoro cantar e representar. Aqui dentro do peito, deste cansado coração, bate o
pulsar de uma artista. É por este amor que agora faço parte do Rancho das
Tricanas de Coimbra. É por esta paixão, que me consome e me dá alento, que no
ano passado abracei o projeto da “Orquestra dos Músicos de Rua de Coimbra”. Até
ando doente por não cantar. Quando voltamos à rua, Luís?”
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