quarta-feira, 18 de junho de 2014

PRECEITOS FUNDAMENTAIS QUE SE ESBOROAM




“ viver honestamente (honeste vivere), não ofender ninguém (neminem laedere), dar a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere)"

Quem escreveu estes preceitos –os denominados preceitos do direito que nos devem acompanhar ao longo da nossa existência- foi Ulpianus, um eminente pensador e jurista romano, que viveu em Tiro, Roma, entre 150 e 223, da nossa Era Cristã.
Num tempo em que a nossa justiça está em vias de, provavelmente, sair da esfera do domínio público do Estado e ser privatizada lembrei-me de escrever este texto. Não o escrevo por acaso. É que, embora não vá contar entrando em pormenores, hoje mesmo constatei que a justiça deixou de ser a virtude das virtudes, como defendia Cícero. Ou como dizia Aristóteles, “Na filosofia do Homem: Ética e Política“, “As virtudes intelectuais necessitam em boa parte da educação, da experiência e do tempo. Mas as morais também não são produto natural ou imanente. Não nascemos virtuosos. A natureza apenas nos tornou receptivos para as virtudes, capazes de virtudes, mas esta capacidade necessita absolutamente do concurso da nossa acção, pela maturidade e pelo hábito. As virtudes estão assim nos Homens não em acto, mas em potência. É praticando que aprendemos, e é praticando as virtudes que nos tornamos virtuosos. Tornamo-nos justos não por sabermos o que é a Justiça, mas por praticarmos a Justiça. E tanto mais justos seremos quanto mais a Justiça praticarmos. Por isso é tão importante contrair bons hábitos desde a mais tenra infância (…)”.
Como vimos em cima, portanto, a justiça é acima de tudo, como dizia Ulpianus, um atribuir a cada um o que é seu. E este cânone deve guiar-nos como mandamento comportamental no dia-a-dia. Ou seja, é o caminho que nos leva ao aperfeiçoamento, a um melhoramento contínuo, enquanto pessoas gregárias que convivem em sociedade. Ao darmos ao outro o que lhe pertence estamos a respeitar a sua identidade de proprietário –por que, contrariamente ao que se pensa e diz, todos somos donos de alguma coisa. Somos cidadãos de direito e de direitos, donos de um abstrato sentido de exigir respeito ao individual, ao nosso vizinho, ao todo, à colectividade, e ao Estado, enquanto entidade que, logo ao nascer, nos impõe uma ratificação num alegado Contrato Social sem que nos seja perguntado se aceitamos as suas prerrogativas. Somos senhorios da nossa vida –só eu sei o quero e posso fazer dela e ninguém mais. Somos possuidores de um coração que ama algo ou alguém, terreno ou que nos transcende –por que todos amamos. Somos seres de afectos, pelo facto de, intrinsecamente, termos necessidade de reconhecimento, de ser adorados por alguém, pessoa ou animal. Poderemos viver sem dinheiro, com pouca comida e água, mas sem afeição, sem carinho, fenecemos por dentro e acabamos por morrer espiritualmente de solidão e mágoa. O amor é o oxigénio anímico que toca a alma e move o coração. É a religião, o religare, que nos liga entre humanos. É a ponte que medeia entre o nascimento e a morte.
Mas se a regra de dar ao outro o que é seu deve ser um caminho justo, um meio para atingir o máximo da perfeição humana, é também um destino, um fim em si mesmo. Um ilusório espelho reflector que devolve a cada um o que lhe foi injustamente negado. E é nesta balança de dois pratos oscilantes, um justo, o bem, e outro injusto, o mal, que o fiel (representado pelo juiz), enquanto imparcial e mantendo uma certa e necessária equidistância entre as partes, é um importante meio que entretece a teia da convivência humana. A justiça ao atribuir uma sanção justa que, por um lado, restitua os danos e satisfaça os lesados, por outro, puna o infractor e contribua para desmotivar a prevaricação social, é um fundamental instrumento de paz social. A justiça é um direito fundamental constitucionalmente consagrado, um cardápio máxime, o primado de um universo que distribui os vários direitos aos cidadãos –sabendo nós que a cada um, em reverso, corresponderá sempre uma obrigação.
Não sendo da minha seara, naturalmente que não detenho conhecimento sobre as novas alterações aos Códigos de Processo, tenho apenas uma informação sumária, como, por exemplo, no Processo Civil há uma elevada preocupação em mostrar serviço, aumentando a produtividade dos juízes em julgamentos para combater os expedientes dilatórios e outras matérias de processo. As perguntas que urgem responder a um leigo, como eu, são: o cidadão no conflito civil ficará mais protegido? Ou pelo contrário, e até pelo desmesurado aumento de custas processuais, ficará cada vez mais à mercê do livre arbítrio de quem é mais forte?
E no Processo Penal, como exemplo, nas alterações no âmbito da suspensão provisória do processo e “relativamente aos crimes de furto, de valor diminuto e com recuperação imediata dos bens móveis subtraídos, e quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, a suspensão não depende da concordância do Assistente”, será que o Ministério Público quando pretende aplicar uma multa ao arguido com a promessa de não constar no Registo Criminal estará interessado no apuramento da verdade? Ou, recorrendo a um expediente financeiro, de coima, estará apenas e simplesmente interessado em aumentar a produtividade e arrumar processos? Onde cabe aqui a eficácia da justiça enquanto virtude das virtudes? Ao proceder assim, ao tentar “arquivar” a qualquer custo, terá noção o Ministério Público no quanto está contribuir para a não exegese e não participação do cidadão na denúncia de crimes?
O que se quer fazer da justiça? É a privatização, o particularizar o direito e cada um fazer dele o que bem entende, que se procura? É o voltar ao Feudalismo com o senhor feudal a ter os seus próprios regulamentos e a impor a sua lei? Ficam estas interrogações para pensarmos.

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