“ viver
honestamente (honeste vivere), não
ofender ninguém (neminem laedere), dar
a cada um o que lhe pertence (suum cuique tribuere)"
Quem escreveu estes preceitos –os denominados
preceitos do direito que nos devem acompanhar ao longo da nossa existência- foi
Ulpianus, um eminente pensador e jurista romano, que viveu em Tiro, Roma, entre
150 e 223, da nossa Era Cristã.
Num tempo em que a nossa justiça está em vias
de, provavelmente, sair da esfera do domínio público do Estado e ser
privatizada lembrei-me de escrever este texto. Não o escrevo por acaso. É que,
embora não vá contar entrando em pormenores, hoje mesmo constatei que a justiça
deixou de ser a virtude das virtudes,
como defendia Cícero. Ou como dizia Aristóteles, “Na filosofia do Homem: Ética
e Política“, “As virtudes intelectuais
necessitam em boa parte da educação, da experiência e do tempo. Mas as morais
também não são produto natural ou imanente. Não nascemos virtuosos. A natureza
apenas nos tornou receptivos para as virtudes, capazes de virtudes, mas esta
capacidade necessita absolutamente do concurso da nossa acção, pela maturidade
e pelo hábito. As virtudes estão assim nos Homens não em acto, mas em potência.
É praticando que aprendemos, e é praticando as virtudes que nos tornamos
virtuosos. Tornamo-nos justos não por sabermos o que é a Justiça, mas por
praticarmos a Justiça. E tanto mais justos seremos quanto mais a Justiça
praticarmos. Por isso é tão importante contrair bons hábitos desde a mais tenra
infância (…)”.
Como vimos em cima, portanto, a justiça é
acima de tudo, como dizia Ulpianus, um atribuir a cada um o que é seu. E este cânone deve guiar-nos como
mandamento comportamental no dia-a-dia. Ou seja, é o caminho que nos leva ao
aperfeiçoamento, a um melhoramento contínuo, enquanto pessoas gregárias que
convivem em sociedade. Ao darmos ao outro o que lhe pertence estamos a
respeitar a sua identidade de proprietário –por que, contrariamente ao que se
pensa e diz, todos somos donos de alguma coisa. Somos cidadãos de direito e de
direitos, donos de um abstrato sentido de exigir respeito ao individual, ao
nosso vizinho, ao todo, à colectividade, e ao Estado, enquanto entidade que,
logo ao nascer, nos impõe uma ratificação num alegado Contrato Social sem que nos seja perguntado se aceitamos as suas
prerrogativas. Somos senhorios da nossa vida –só eu sei o quero e posso fazer
dela e ninguém mais. Somos possuidores de um coração que ama algo ou alguém, terreno
ou que nos transcende –por que todos amamos. Somos seres de afectos, pelo facto
de, intrinsecamente, termos necessidade de reconhecimento, de ser adorados por
alguém, pessoa ou animal. Poderemos viver sem dinheiro, com pouca comida e
água, mas sem afeição, sem carinho, fenecemos por dentro e acabamos por morrer espiritualmente
de solidão e mágoa. O amor é o oxigénio anímico que toca a alma e move o
coração. É a religião, o religare, que
nos liga entre humanos. É a ponte que medeia entre o nascimento e a morte.
Mas se a regra de dar ao outro o que é seu
deve ser um caminho justo, um meio para atingir o máximo da perfeição humana, é
também um destino, um fim em si mesmo. Um ilusório espelho reflector que
devolve a cada um o que lhe foi injustamente negado. E é nesta balança de dois
pratos oscilantes, um justo, o bem, e outro injusto, o mal, que o fiel
(representado pelo juiz), enquanto imparcial e mantendo uma certa e necessária
equidistância entre as partes, é um importante meio que entretece a teia da
convivência humana. A justiça ao atribuir uma sanção justa
que, por um lado, restitua os danos e satisfaça os lesados, por outro, puna o
infractor e contribua para desmotivar a prevaricação social, é um fundamental
instrumento de paz social. A justiça é um direito fundamental
constitucionalmente consagrado, um cardápio máxime,
o primado de um universo que distribui os vários direitos aos cidadãos –sabendo
nós que a cada um, em reverso, corresponderá sempre uma obrigação.
Não sendo da minha seara, naturalmente que não
detenho conhecimento sobre as novas alterações aos Códigos de Processo, tenho
apenas uma informação sumária, como, por exemplo, no Processo Civil há uma
elevada preocupação em mostrar serviço, aumentando a produtividade dos juízes em julgamentos para combater os
expedientes dilatórios e outras matérias de processo. As perguntas que urgem
responder a um leigo, como eu, são: o cidadão no conflito civil ficará mais
protegido? Ou pelo contrário, e até pelo desmesurado aumento de custas processuais,
ficará cada vez mais à mercê do livre arbítrio de quem é mais forte?
E no Processo Penal, como exemplo, nas
alterações no âmbito da suspensão provisória do processo e “relativamente
aos crimes de furto, de valor diminuto e com recuperação imediata dos bens
móveis subtraídos, e quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial,
durante o período de abertura ao público, a suspensão não depende da
concordância do Assistente”,
será que o Ministério Público quando pretende aplicar uma multa ao arguido com
a promessa de não constar no Registo Criminal estará interessado no apuramento
da verdade? Ou, recorrendo a um expediente financeiro, de coima, estará apenas
e simplesmente interessado em aumentar a produtividade e arrumar processos?
Onde cabe aqui a eficácia da justiça enquanto virtude das virtudes? Ao proceder
assim, ao tentar “arquivar” a qualquer
custo, terá noção o Ministério Público no quanto está contribuir para a não exegese e não participação do cidadão na
denúncia de crimes?
O que se quer fazer da justiça? É a
privatização, o particularizar o direito e cada um fazer dele o que bem entende,
que se procura? É o voltar ao Feudalismo com o senhor feudal a ter os seus
próprios regulamentos e a impor a sua lei? Ficam estas interrogações para
pensarmos.
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