LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: UM DESRESPEITO TOTAL"; "OS ÚLTIMOS DIAS DA BALVERA"; e "CAMINHOS CRUZADOS"
REFLEXÃO: UM DESRESPEITO TOTAL
Encontrei-o à hora do almoço numa destas ruelas
estreitas da Baixa, onde tudo parece desconsolado, a começar pelos envolventes
edifícios em ruína eminente e em símbolo de uma nação a desfazer-se em
frangalhos. Numa cidade sem alma, sem autoestima, são ruas sem odores, sem
ruídos, sem movimentos de pessoas ou animais e que, como nuvem tóxica vinda do
Céu, um manto de silêncio sepulcral tomou conta de tudo e sugere conduzir ao
Inferno. O que mais impressiona nem será o vazio sentido, a passividade como a
atmosfera de desgraça se entranha e é encarada paulatinamente sem dor, mas
antes o ar carregado, fétido, impregnado de tristeza que se apanha às
mãos-cheias no virar da esquina.
Cada um, cruzando-se com um
qualquer conhecido, vai tentando disfarçar, sem parar e para que o outro não
ouse olhar os seus olhos carregados de mágoa pelos estilhaços deste tempo que
nos há-de matar lentamente como se fôssemos tomando diariamente uma gota de
arsénio. Ajeitando um meio sorriso atamancado, sem brilho nas palavras pesadas,
o cumprimento é assim: “olá! Bom dia!
Tudo bem?”. E, sem esperar resposta, segue em frente como se fugisse da sua
própria sombra, ou de um futuro que assusta.
O meu amigo é professor universitário. A sua
idade andará por volta dos quarenta anos. No ramo em que dá aulas na faculdade,
é um especialista na sua área a nível nacional –senão também de âmbito internacional.
É um tipo simples, daquelas pessoas sem peneiras que muito gosto e me dá gosto
falar e que me faz acreditar na humildade do homem enquanto ser de igualdade. Já
estivemos juntos numa ou outra causa na cidade. Para além de ser
inteligentíssimo, é uma pessoa sensível e sempre pronto a ajudar o seu
semelhante. É um homem que se move pelos sentimentos de partilha urbana, de
convicção humanística e militância na entreajuda social, e não tomado de tolas
ideologias coloridas em tons berrantes.
Ele caminhava no outro lado da rua e fui ao
seu encontro. Pareceu-me mais magro desde a última vez que nos vimos –talvez
uns três, quatro meses, por aí –o tempo, neste tempo indefinido, passa tão a
correr. Notei que o seu cabelo estava meio desgrenhado, como cultura que, por
falta de ser sachada e regada, parece meio abandonada pelo agricultor. Iria
jurar que, pela aparente oleosidade na cabeça, talvez não tivesse tomado banho
hoje. Quem sabe por desalento? Os seus olhos, contrariamente a outras alturas
que nos vimos, mesmo emoldurados por lentes oculares, pareceram-me nublados e
carregados de solidão e angústia. Então na tal pergunta de retórica de “como está?” -desde há uns tempos para cá
passei a tomar atenção à resposta-, falámos da minha convivência mais virada
para a sobrevivência e das minhas preocupações com o que se passa à minha volta
e que apreendo todos os dias. Inevitavelmente caiu a minha interrogação: e você? Como vai a sua vida?
Foi então que abatido, como se os seus ombros
suportassem o mundo –quem sabe se a fazer um enorme esforço para não chorar-,
me confidenciou que o seu futuro em Coimbra está por pouco. Provavelmente, e mais
que certo, vai ter de emigrar dentro de pouco tempo. Vai ser dispensado na
Universidade. Não sabe as bases em que assentaram os critérios para o
despedimento. Falta de produtividade? Não, não pode ser. Este ano, como
assistente, foi responsável por quatro vezes mais o número de alunos e turmas
do ano passado. Então como estipularam a sua sorte? Saberá lá ele! Calcula que
fizeram da sua vida, da sua dedicação à causa universitária no estudo e
investigação, uma folha Excel e, entre
números e consoantes de traços e contra traços, traçaram o seu destino… num desrespeito total! Dito assim mesmo,
sublinhado como se a terminação da frase “desrespeito
total” ficasse a balouçar ao vento como roupa a corar estendida num cordão
e tocada pelo vento. “Um desrespeito
total!”.
Continua o meu amigo, “não me resta outro caminho a não ser
partir. A minha mulher está desempregada e tenho um bebé de tenra idade. É
triste uma pessoa abandonar um caminho a meio. Muito triste! Você não acha,
Luís? O que é que se quer fazer desta terra? O que se espera deste Portugal?”
OS ULTIMOS DIAS DA BALVERA
Durante
cerca de três dezenas de anos a perfumaria Balvera perfumou a nossa Rua Eduardo
Coelho. Nos últimos doze anos a Helena Cristo, a diligente funcionária, com a
sua personalidade sorumbática –porque talvez a sorte nunca foi sua madrinha-,
leal de humanidade e boa pessoa, foi a nossa companheira diária neste troço de
cidade e trilho existencial. Ambos, estabelecimento e pessoa, vão-nos deixar. A
Balvera vai encerrar no próximo dia 31. Se a loja, enquanto número, vai ficar
registada na memória dos presentes –e para os vindouros com este apontamento-,
a Lena, como aqui é
carinhosamente tratada e estimada, vai deixar muita saudade. Igualmente com
ela, e levando também as nossas recordações, vão também outras colegas
eventuais que passaram nesta casa como a Georgina Abreu e a Micaela Vilão.
É um pouco de nós que se vai e, num silêncio de conluio, a todos deixam mais pobres na convivência. Tem sido assim nos últimos anos. De outros estabelecimentos que fecharam, vimos partir a Maria, a João, a Adélia, a Filomena, a Liliana, a Lucinda, a Ermelinda e outros.
É um pouco de nós que se vai e, num silêncio de conluio, a todos deixam mais pobres na convivência. Tem sido assim nos últimos anos. De outros estabelecimentos que fecharam, vimos partir a Maria, a João, a Adélia, a Filomena, a Liliana, a Lucinda, a Ermelinda e outros.
A cidade, no “modus vivendi”, em analogia, é quase como um naperon de renda
constituído por pequenos desenhos de linha que foi crescendo, crescendo até ao resultado
final. Se entre as duas coisas há uma diferença substancial, em que o bordado
tem um final e a urbe nunca estará concluída, haverá, no entanto, uma
similitude: se ambos não forem cuidados, e um fio do seu entretecido quebrar, a
cadeia que liga os seus desenhos cairá como farrapo velho sem prestabilidade. A
urbe, enquanto centro de convivência harmoniosa entre um comércio que
revitaliza e uma habitação que resguarda, só perdurará no tempo se os seus
estabelecimentos, interligados com pessoas e como fonte de rendimento,
cumprirem o seu objeto. As lojas tradicionais são espaços físicos de compra e
venda cuja génese mercantil vêm diretamente da Idade Média. Se no princípio
haveria uma única preocupação que era a troca de produtos e visando unicamente
o egoísta rendimento do tendeiro, com a Idade Moderna, com o desenvolvimento da
Revolução Industrial e pelo marketing na criação de necessidades e do monetarismo
como instrumento de permuta facilitada, o comércio de cidade, enquanto estuário
de confluência dos produtos fabricados e de manufatura, para além de ser o
reflexo direto dos dois, passou a ser também o seu espelho de progresso das
coletividades habitadas.
Com este tempo de agora, pós-industrial,
pós-moderno, pós, pós, pós-qualquer coisa, onde o ontem feneceu
sem glória e o hoje, no mesmo dia, nasce, cresce e morre, e se entende como
desenvolvimento e sinónimo do menor esforço, de braços cruzados, sentimos e
vemos este fenómeno mas não lobrigamos solução. Impávidos e serenos assistimos
ao abandono dos campos, ao encerramento das fábricas, e numa economia europeia
planeada na teoria da vantagem
comparativa –em que cada nação deve produzir apenas nas áreas em que
se sentir mais apta e na sua proporcional produtividade-, passámos de
produtores autossustentáveis a vendedores de importação de tudo e mais alguma
coisa. Com a falência de políticas de sedentarização no interior, nas últimas
décadas, progressivamente a cidade, enquanto centro de atração e símbolo de
eldorado, foi sendo cada vez mais invadida por um trabalhador pouco
classificado e em busca da riqueza e da sua própria sobrevivência. Mas, tal
como o país dividido entre litoral e interior, sem reação, também partilhámos a
secessão do burgo entre zona velha –para pobres- e parte moderna –para ricos. Como
guetos ou fabelas, estas frações antigas passaram a ser um polo de curiosidade
para estudantes apresentarem teses de mestrado e uma espécie de museu vivo onde
os avós trazem os netos e, entrando nas lojas como se estivessem no sótão a
observar o triciclo da sua infância, proferem a frase idiomática “no meu tempo…”. Os próprios turistas
estrangeiros que nos visitam olham para o comerciante tradicional de rua com o
mesmo sentimento desvalorizado e ultrapassado que o nacional português olha o
vendedor marroquino.
Tendo em conta as recentes declarações do
Primeiro-Ministro de Portugal, Passos Coelho, de que não se devem manter
empresas antigas em dificuldades mas apoiar novos investimentos a questão é:
poderemos ser ícones de um comércio em desaparecimento e, ao mesmo tempo
rentabilizando a memória, conseguir aguentar até melhores dias de negócio que
tardam?
E a Helena Cristo e outras Georginas que,
juntamente com os pontos de venda onde durante anos laboraram, vão
desaparecendo do nosso olhar deixando as nossas almas e ruas ainda mais vazias
vão fazer o quê? Onde estão as empresas novas para aproveitar o seu enorme conhecimento
experiencial?
CAMINHOS CRUZADOS
O relógio marcava 11 horas neste último
domingo. Ladeada por uma vintena de atentos jovens sentados no asfalto da pedra
fria da Rua Eduardo Coelho a voz potente de Isabel Craveiro, da direção do
Teatrão, ecoava no silêncio entrecortado por um ou outro passante. Tratava-se
de uma formação artística em teatro para jovens adolescentes. Inserido no “Linhas Cruzadas”, um projeto pedagógico
“CBR Linhas Art Lab”, em que estão
envolvidas várias entidades como o Teatrão, o Jazz ao Centro Clube, o Centro de
Artes Plásticas de Coimbra e a Casa da Esquina e se procura fomentar a arte de
encenação entre artistas consagrados e emergentes.
Segundo Isabel Craveiro, “no caso deste ensaio é uma preparação para um espetáculo de rua que
apresentaremos no próximo dia 29 do corrente nesta artéria outrora tão
representativa de uma corporação, os sapateiros, e tão relevante no comércio
tradicional. É uma ação dirigida a pensar o espaço urbano, na importância dos
comerciantes no desenvolvimento da cidade, e no que há de diferente e hoje não
tem projeto.”
A seguir os jovens, com uma caixa vazia na
mão, interagiam com os transeuntes tentando vender uns sapatos. “Temos sapatos pró menino e p´rá menina! Este
é o número 38! Quer comprar?”
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