segunda-feira, 23 de junho de 2014

OS ÚLTIMOS DIAS DA BALVERA

(À direita a Helena Cristo e à esquerda a Liliana Machado)


Durante cerca de três dezenas de anos a perfumaria Balvera perfumou a nossa Rua Eduardo Coelho. Nos últimos doze anos a Helena Cristo, a diligente funcionária, com a sua personalidade sorumbática –porque talvez a sorte nunca foi sua madrinha-, leal de humanidade e boa pessoa, foi a nossa companheira diária neste troço de cidade e trilho existencial. Ambos, estabelecimento e pessoa, vão-nos deixar. A Balvera vai encerrar no próximo dia 31. Se a loja, enquanto número, vai ficar registada na memória dos presentes –e para os vindouros com este apontamento no blogue-, a Lena, como aqui é carinhosamente tratada e estimada, vai deixar muita saudade. Igualmente com ela, e levando também as nossas recordações, vão também outras colegas eventuais que passaram nesta casa como a Georgina Abreu e a Micaela Vilão.
É um pouco de nós que se vai e, num silêncio de conluio, a todos deixam mais pobres na convivência. Tem sido assim nos últimos anos. De outros estabelecimentos que fecharam, vimos partir a Maria, a João, a Adélia, a Filomena, a Liliana, a Lucinda, a Ermelinda e outros.
A cidade, no “modus vivendi”, em analogia, é quase como um naperon de renda constituído por pequenos desenhos de linha que foi crescendo, crescendo até ao resultado final. Se entre as duas coisas há uma diferença substancial, em que o bordado tem um final e a urbe nunca estará concluída, haverá, no entanto, uma similitude: se ambos não forem cuidados, e um fio do seu entretecido quebrar, a cadeia que liga os seus desenhos cairá como farrapo velho sem prestabilidade. A urbe, enquanto centro de convivência harmoniosa entre um comércio que revitaliza e uma habitação que resguarda, só perdurará no tempo se os seus estabelecimentos, interligados com pessoas e como fonte de rendimento, cumprirem o seu objecto. As lojas tradicionais são espaços físicos de compra e venda cuja génese mercantil vêm directamente da Idade Média. Se no princípio haveria uma única preocupação que era a troca de produtos e visando unicamente o egoísta rendimento do tendeiro, com a Idade Moderna, com o desenvolvimento da Revolução Industrial e pelo marketing na criação de necessidades e do monetarismo como instrumento de permuta facilitada, o comércio de cidade, enquanto estuário de confluência dos produtos fabricados e de manufactura, para além de ser o reflexo directo dos dois, passou a ser também o seu espelho de progresso das colectividades habitadas.
Com este tempo de agora, pós-industrial, pós-moderno, pós, pós, pós-qualquer coisa, onde o ontem feneceu sem glória e o hoje, no mesmo dia, nasce, cresce e morre, e se entende como desenvolvimento e sinónimo do menor esforço, de braços cruzados, sentimos e vemos este fenómeno mas não lobrigamos solução. Impávidos e serenos assistimos ao abandono dos campos, ao encerramento das fábricas, e numa economia europeia planeada na teoria da vantagem comparativa –em que cada nação deve produzir apenas nas áreas em que se sentir mais apta na sua proporcional produtividade-, passámos de produtores auto-sustentáveis a vendedores de importação de tudo e mais alguma coisa. Com a falência de políticas de sedentarização no interior, nas últimas décadas, progressivamente a cidade, enquanto centro de atracção e símbolo de eldorado, foi sendo cada vez mais invadida por um trabalhador pouco classificado e em busca da riqueza e da sua própria sobrevivência. Mas, tal como o país dividido entre litoral e interior, sem reacção, também partilhámos a secessão do burgo entre zona velha –para pobres- e parte moderna –para ricos. Como guetos ou fabelas, estas fracções antigas passaram a ser um pólo de curiosidade para estudantes apresentarem teses de mestrado e uma espécie de museu vivo onde os avós trazem os netos e, entrando nas lojas como se estivessem no sótão a observar o triciclo da sua infância, proferem a frase idiomática “no meu tempo…”. Os próprios turistas estrangeiros que nos visitam olham para o comerciante tradicional de rua com o mesmo sentimento desvalorizado e ultrapassado que o nacional português olha o vendedor marroquino.
Tendo em conta as recentes declarações do Primeiro-Ministro de Portugal, Passos Coelho, de que não se devem manter empresas antigas em dificuldades mas apoiar novos investimentos a questão é: poderemos ser ícones de um comércio em desaparecimento e, ao mesmo tempo rentabilizando a memória, conseguir aguentar até melhores dias de negócio que tardam?
E a Helena Cristo e outras Georginas que, juntamente com os pontos de venda onde durante anos laboraram, vão desaparecendo do nosso olhar deixando as nossas almas e ruas ainda mais vazias vão fazer o quê? Onde estão as empresas novas para aproveitar o seu enorme conhecimento experiencial?

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