(Imagem da Web)
Cruzámo-nos à hora de almoço junto à sua loja,
numa destas ruas estreitas, e, como sempre, trocamos umas palavras de alento
mútuo. Marinela é uma pessoa de meia-idade e dedicou uma grande parte da sua
vida ao comércio, na Baixa. Aqui, desde há décadas a trabalhar, começa o seu
dia, umas vezes esplendoroso, outras assim, assim. À noite, e depois do
crepúsculo ter estendido seu manto negro, já cansada e após arrumar tudo lá em
casa e deixar a máquina a lavar, acaba a sua jornada de labuta duplicada e se
deita a pensar no amanhã que há-de vir mais rápido do que se quer.
Depois de vinte e cinco anos a correr para o
mesmo sítio, a cumprir ordens e sempre no mesmo horário, no ano passado, Marinela
foi confrontada com uma verdade já há muito adivinhada: o encerramento do
negócio que constituiu parte do seu rendimento familiar e horizonte de vida -somos seres de rotinas. Depois de um tempo
a calcorrear sempre o mesmo percurso fazemos dele um hábito enraizado e tomamo-lo
como parte de nós. De repente, como num tremor de terra, Marinela vê o
chão, aquele chão que sempre se apresentou firme, fugir-lhe debaixo dos pés.
Num golpe de asa do destino –por que este
deve ser um pássaro que se passeia no meio de todos livremente-, naqueles voos
rasantes que vemos acontecer aos outros mas julgamos que nunca vai bater à
nossa porta, tinha à sua frente uma via aberta para o desemprego. Mas a questão
é como entrar num mundo de inactividade que se desconhece e que, sem apelo nem
agravo, tem de se receber sem recusar? Em catarse, como reconhecer que, depois
de uma vida de utilidade prática e o trabalho é muito mais do que um proveito e
passa também a ser uma terapia -e o reconhecimento da pessoa enquanto membro de
um colectivo-, se vai arrumar na prateira como se de um objecto velho e sem
valor se tratasse? Como aceitar que a idade mental que se sente não é igual à
que consta no Cartão de Cidadão e no rosto dividida em cada traço marcado pelo
tempo? E agora? E agora? São as
interrogações repetidas que, carecendo de resposta, como eco que se perde no
vácuo e fica sem som de retorno. Após noites brancas sem pregar olho e com
reuniões familiares, onde o futuro como carta de Tarot foi jogado em cima da
mesa, escolheu uma vereda que, mesmo com os picos do silvado a provarem a sua
carne, continuasse a sentir-se viva e fazer vibrar a sua alma.
Com muita dificuldade, empatando
o que tinha aforrado e mais uns empréstimos pedidos aos mais chegados, num mês
do segundo semestre do ano passado, Marinela abriu o seu negócio. Mas esta
época de vacas magras, onde o pasto verde escasseia e o seco emigrou para
outras paragens, não se mostra generoso com quem arrisca tudo para se sentir
útil. É um tempo dividido, onde o cinzento-escuro faz apagar as cores vivas da
espiritualidade e o mundo, com toda a sua carga negativa, parece poisar nos
ombros de quem caminha com grande esforço e suores continuados. E se a tristeza
se propaga muito mais rápido do que a alegria, é mais que certo que a mágoa,
como enxurrada num cálido Agosto, vai arrastar todos. Transeuntes e lojistas,
sem o sentirem, irão ser envolvidos num nevoeiro opaco e sem luz onde o presente
parece passado e o futuro já começou ontem.
É por isto mesmo que encontrei hoje
a Marinela de olhos tristes, sem brilho e desalentados. Mas se para amanhã, tal
como hoje na tarde que se mostra macilenta e depressiva, os meteorologistas,
como prescientes meticulosos que retiram a beleza da incerteza, prevêm chuva e
dia desprezível e sem identidade, para a semana iremos ter altas temperaturas e
um Sol radioso que vai alavancar o ânimo da minha amiga. Tal como a Natureza
nos mostra, nada é contínuo e infinito. Pelo contrário, tudo é dinâmico e
impreciso. Temos apenas de saber esperar. Força Marinela! O Sol vai brilhar!
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