(Imagem da Web)
Encontrei-o à hora do almoço numa destas ruelas
estreitas da Baixa, onde tudo parece desconsolado, a começar pelos envolventes edifícios
em ruína eminente e em símbolo de uma nação a desfazer-se em farrapos. Numa
cidade sem alma, sem auto-estima, são ruas sem odores, sem ruídos, sem movimentos
de pessoas ou animais e que, como nuvem tóxica vinda do Céu, um manto de silêncio
sepulcral tomou conta de tudo e sugere conduzir ao Inferno. O que mais impressiona
nem será o vazio sentido, a passividade como a atmosfera de desgraça se
entranha e é encarada paulatinamente sem dor, mas antes o ar carregado, fétido,
impregnado de tristeza que se apanha às mãos-cheias no virar da esquina.
Cada um, cruzando-se com um qualquer
conhecido, vai tentando disfarçar, sem parar e para que o outro não ouse olhar
os seus olhos carregados de mágoa pelos estilhaços deste tempo que nos há-de
matar lentamente como se fôssemos tomando diariamente uma gota de arsénio.
Ajeitando um meio sorriso atamancado, sem brilho nas palavras pesadas, o cumprimento
é assim: “olá! Bom dia! Tudo bem?”.
E, sem esperar resposta, segue em frente como se fugisse da sua própria sombra,
ou de um futuro que assusta.
O meu amigo é professor universitário. A sua
idade andará por volta dos quarenta anos. No ramo em que dá aulas na faculdade,
é um especialista na sua área a nível nacional –senão também de âmbito internacional.
É um tipo simples, daquelas pessoas sem peneiras que muito gosto e me dá gosto
falar e que me faz acreditar na humildade do homem enquanto ser de igualdade. Já
estivemos juntos numa ou outra causa na cidade. Para além de ser inteligentíssimo,
é uma pessoa sensível e sempre pronto a ajudar o seu semelhante. É um homem que
se move pelos sentimentos de partilha urbana, de convicção humanística e
militância na entre-ajuda social, e não tomado de tolas ideologias coloridas em
tons berrantes.
Ele caminhava no outro lado da rua e fui ao
seu encontro. Pareceu-me mais magro desde a última vez que nos vimos –talvez uns
três, quatro meses, por aí –o tempo, neste tempo indefinido, passa tão a correr.
Notei que o seu cabelo estava meio desgrenhado, como cultura que, por falta de
ser sachada e regada, parece meio abandonada pelo agricultor. Iria jurar que, pela
aparente oleosidade na cabeça, talvez não tivesse tomado banho hoje. Quem sabe
por desalento? Os seus olhos, contrariamente a outras alturas que nos vimos,
mesmo emoldurados por lentes oculares, pareceram-me nublados e carregados de
solidão e angústia. Então na tal pergunta de retórica de “como está?” -desde há uns tempos para cá passei a tomar atenção à
resposta-, falámos da minha convivência mais virada para a sobrevivência e das
minhas preocupações com o que se passa à minha volta e que apreendo todos os
dias. Inevitavelmente caiu a minha interrogação: e você? Como vai a sua vida?
Foi então que abatido, como se os seus ombros
suportassem o mundo –quem sabe se a fazer um enorme esforço para não chorar-,
me confidenciou que o seu futuro em Coimbra está por pouco. Provavelmente, e mais
que certo, vai ter de emigrar dentro de pouco tempo. Vai ser dispensado na
Universidade. Não sabe as bases em que assentaram os critérios para o despedimento.
Falta de produtividade? Não, não pode ser. Este ano, como assistente, foi
responsável por quatro vezes mais o número de alunos e turmas do ano passado.
Então como estipularam a sua sorte? Saberá lá ele! Calcula que fizeram da sua
vida, da sua dedicação à causa universitária no estudo e investigação, uma
folha Excel e, entre números e consoantes de traços e contra-traços, traçaram o
seu destino… num desrespeito total.
Dito assim mesmo, sublinhado como se a terminação da frase “desrespeito total” ficasse a balouçar ao vento como roupa a corar
estendida num cordão e tocada pelo vento. “Um
desrespeito total!”.
Continua o meu amigo, “não me resta outro caminho a não ser
partir. A minha mulher está desempregada e tenho uma filha de meses. É triste
uma pessoa abandonar um caminho a meio. Muito triste! Você não acha, Luís? O
que é que se quer fazer desta terra? O que se espera deste Portugal?”
1 comentário:
Destino de muitos. Só mesmo a insensatez de quem nos governa pode levar a isto. O país gasta uma fortuna na formação de um quadro superior, depois dispensa-o gratuitamente para que outros aproveitem o seu saber.
Enviar um comentário