É uma encantadora mulher, que está para a vida
como traineira está para o mar. Se tem de ser, tem de ser, barco à água! Já atravessou ondas alterosas, tornados de vã esperança, que a fizeram temer o futuro para tocar o horizonte. Os seus olhos
negros, como proa apontada ao longínquo, carregam fardos de nostalgia e
solidão. E ela pensa nisso? Ora, ora! Isso é que era bom! Dar confiança à
tristeza? Alegria precisa-se, mesmo que se vá buscar ao fundo da alma, às catacumbas
desconhecidas de um ser que parece
vagamente nosso conhecido. Por isso mesmo, como para enxotar a melancolia, faz
da cantiga um tónico rejuvenescedor anímico. Cada resplandecer da aurora, cada
fio de luz, é um milagre de Deus que vê nascer diariamente para ir trabalhar
atravessando a madrugada. É uma mulher do povo. Uma heroína desconhecida. Um
modelo popular de que ninguém fala, ninguém sabe nada desta mulher-mãe-avó, um todo-o-terreno
onde da fraqueza faz alento e da força um Sol de verão. Esta senhora de que,
com gosto, vou deixar contar um pouco da sua história, dá pelo nome de Celeste
Correia e faz o favor de ser minha amiga. “Canta”
Celeste!
“O que hei-de dizer, Luís? Sou uma pessoa humilde, tu sabes. Tenho 66
anos e, para andar de cabeça erguida, trabalho, trabalho, como se a labuta
fosse o meu caminho e o meu destino, ao mesmo tempo. Nasci na Sé Nova, na parte
alta da cidade, num berço remediado. Os meus pais viviam razoavelmente mas
entendiam que o lugar da mulher era em casa e, por conseguinte, só precisava de
aprender costura. E foi o que fizeram comigo. Apesar da professora primária ter
salientado os meus dotes para as letras não foi suficiente para os demover. Aos
9 anos estava a trabalhar numa modista, na Rua das Padeiras. Aos 19 anos casei
e o meu falecido marido, Manuel Dourado, que durante cerca de uma dúzia de anos
foi presidente da Junta de São Bartolomeu, entendeu também que o meu lugar era
em casa a labutar… na costura. Tive de mandar um grito de Ipiranga para poder
trabalhar fora. Entretanto fiquei viúva e o trabalho, como manto de inverno e
aderindo à minha pele, nunca mais me largou. Preciso de estar permanentemente
ocupada. Ao abrigo do Programa Novas Oportunidades concluí o 9.º ano e agora
estou na ESEC, Escola Superior de Educação de Coimbra, a fazer um curso de informática. Talvez também por isso mesmo,
sou uma pessoa de causas. Ajudar quem precisa é para mim um prazer
inexplicável. Quando me chamam vou para o Banco Alimentar. Vivo um dia de cada
vez. Desde que tive uma ameaça de cancro da mama, passei a encarar a existência
como uma dádiva divina e não um peso. Adoro cantar e representar. Aqui dentro
do peito, deste cansado coração, bate o pulsar de uma artista. É por este amor
que agora faço parte do Rancho das Tricanas de Coimbra. É por esta paixão, que
me consome e me dá alento, que no ano passado abracei o projecto da “Orquestra
dos Músicos de Rua de Coimbra”. Até ando doente por não cantar. Quando voltamos
à rua, Luís?”
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