(Imagem da Web)
Nos
últimos tempos, com tendência a aumentar, tenho verificado que uns e outros nas
ruas largas, sem pejo nem recalcamento, estendem a mão à caridade com a
lengalenga repetida: “por favor, dê-me
uma moeda para comprar pão”. São pessoas na casa dos quarenta, com aspecto bem arranjado –pessoas como eu e
você, diria com algum cinismo- e ar saudável. Certamente como a maioria, olho
para eles com algum desdém e tento ignorar. Se
ao menos fossem velhinhos, maltrapilhos e esclerosados, ainda vá lá, agora
pessoas novas e saudáveis? Penso para mim, em busca da contrição e do
perdão moral de não ter comparticipado, enquanto desvio o passo. Que diabo, até parece que o acto de pedir
está transformado numa coisa corriqueira –continuo a pensar com meus
botões. Tenho saudades do tempo em que
pedir alguma coisa a alguém era uma acção farisaica que implicava vergonha, um
estigma de pobreza que mandava para o charco a alma de quem rogava. Agora não.
Como se num clarão ofuscante, por obra e graça do Divino Espírito Santo, todos
nos sentíssemos indigentes e mais iguais ao outro que passa, foi-se a vergonha
e ressalta o espírito de sobrevivência. E lá vem a ladainha: “uma moedinha para
comprar pão, por favor!”
Já por várias vezes me cruzei com ela na Rua
da Sofia e me estendeu a mão. É uma mulher baixa, anafada, de olhar triste
quando em descanso e com as maçãs do rosto rosadas. Veste com simplicidade, uma
mulher suburbana, dos arredores da cidade –penso com meus botões. À medida que
me aproximo, imagino que olhando para mim, para a minha forma de vestir, fará
cálculos sobre quanto lhe vou colocar na mão aberta. Ou talvez não dê nada, saberá
lá ela. Imagino-a a carregar a arma de arremesso verbal com a frase repetida tantas
vezes ao longo do dia. Estou à sua frente e cumprimento-a com um olá e atiro de supetão: já há uns tempos que ando para trocar umas
impressões consigo. Posso falar? Não leva a mal? Abrindo os olhos de
admiração opera uma metamorfose: os dois pontos negros parecem iluminar-se e o
rosto abre-se como um botão de rosa. E responde: “claro que não levo a mal!”. Atiro a primeira pergunta que vai fazer
desenrolar a meada: então diga-me, sendo
você tão nova, por qual a razão de andar aqui a pedir todos os dias?
“Porque preciso, senhor! Tenho
46 anos, vivo ali para os lados da Estação Velha, numa casa camarária. Estou
desempregada e recebo do RSI, Rendimento Social de Inserção, cerca de 180
euros. Estou a frequentar um curso de bordados. Vivo com um companheiro. Tem 63
anos mas é muito doente. Tem uma série de complicações e até varizes nas
pernas. Ele é muito meu amigo, não me obriga a vir pedir mas, como o comer
falta, lá me vai dizendo: vai até lá. Vai! E eu venho. É certo que pago só 5
euros de renda e mais 15 por uma territa que o meu homem cultiva mas o dinheiro
não chega. Sabe que tenho lá agora coelhinhos? São tão lindos! Assim pequeninos
–e exemplifica com as mãos, ao mesmo tempo que sorri como uma criança. Tenho lá também couves. Quando for daqui
vou ali ao Pingo Doce comprar uma carne e vou fazer sopa. Custa muito pedir,
acredite! Custa mesmo! Agora até já estou mais habituada. Uma pessoa adapta-se,
não é? Mas o esforço vale a pena. Tiro quase sempre à volta de 20 euros. É isto
que nos ajuda a viver. Mas custa muito, repito. Costumo ir para ali para a
porta da Igreja de Santa Cruz. O que mais me faz sentir o sofrimento é quando
vejo pessoas conhecidas. Apetece-me enterrar pelo chão abaixo. Encontro aqui na
rua gente boa e gente má. Ainda há dias passou uma mulher –você sabia que as
mulheres são muito piores do que os homens? Algumas são autênticas megeras!-,
ela olhou para mim e disse: “vá trabalhar sua vaca!”. Eu não trato mal ninguém
e só dá quem quer, mas ali passei-me completamente dos carretos. E dei-lhe o
troco merecido. Mas, felizmente, há pessoas muito boas, olhe que, ainda não
passou muito tempo, um senhor, parou, puxou da carteira e deu-me 20 euros. Uma
fortuna, senhor! Olhe que só não me atirei a ele, com um abraço, e lhe dei dois
beijos porque tive vergonha! Aparece de tudo. Muito obrigado por falar comigo,
senhor!”
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