sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O (A)TRIBUTO"; "A MULHER QUE ESTENDE A MÃO"; "O RESTAURADOR OLEX".


REFLEXÃO: O (A)TRIBUTO

Com uma verba atribuída de 52 mil euros, o executivo camarário deliberou, nesta última segunda-feira, organizar um torneio de futebol juvenil em homenagem a Jorge Lemos, ex-vereador e deputado municipal pelo Partido Socialista e dirigente da Associação de Futebol de Coimbra, e recentemente falecido.
Conheci relativamente bem o saudoso engenheiro Lemos. Pela sua honestidade, simplicidade e alheio a homenagens, se fosse vivo, tenho a certeza de que não aceitaria tal tributo. Com toda a deferência pela sua grata memória, em especulação, quase apostaria que se o pudesse fazer, na sua voz calma e assertiva, proclamaria: “estes gajos são doidos! Andam a gastar dinheiro com iniciativas sem nexo. O que fiz eu para merecer ser venerado desta maneira com gastos públicos em tempo de crise, quando há tantos munícipes a passar mal? Se o partido me quer consagrar, está no seu direito e que o faça através de verbas próprias e dos militantes. Assim, peço muita desculpa, mas dispenso esta contribuição póstuma. Tenham mais respeito pela pessoa séria que fui. Nunca misturei funções públicas com privadas. Nunca alinhei em festas de elevação partidária disfarçadas.”


A MULHER QUE ESTENDE A MÃO

 Nos últimos tempos, com tendência a aumentar, tenho verificado que uns e outros nas ruas largas, sem pejo nem recalcamento, estendem a mão à caridade com a lengalenga repetida: “por favor, dê-me uma moeda para comprar pão”. São pessoas na casa dos quarenta, com aspeto bem arranjado –pessoas como eu e você, diria com algum cinismo- e ar saudável. Certamente como a maioria, olho para eles com algum desdém e tento ignorar. Se ao menos fossem velhinhos, maltrapilhos e esclerosados, ainda vá lá, agora pessoas novas e saudáveis? Penso para mim, em busca da contrição e do perdão moral de não ter comparticipado, enquanto desvio o passo. Que diabo, até parece que o ato de pedir está transformado numa coisa corriqueira –continuo a pensar com meus botões. Tenho saudades do tempo em que pedir alguma coisa a alguém era uma ação farisaica que implicava vergonha, um estigma de pobreza que mandava para o charco a alma de quem rogava. Agora não. Como se num clarão ofuscante, por obra e graça do Divino Espírito Santo, todos nos sentíssemos indigentes e mais iguais ao outro que passa, foi-se a vergonha e ressalta o espírito de sobrevivência. E lá vem a ladainha: “uma moedinha para comprar pão, por favor!”
Já por várias vezes me cruzei com ela na Rua da Sofia e me estendeu a mão. É uma mulher baixa, anafada, de olhar triste quando em descanso e com as maçãs do rosto rosadas. Veste com simplicidade, uma mulher suburbana, dos arredores da cidade –penso com meus botões. À medida que me aproximo, imagino que olhando para mim, para a minha forma de vestir, fará cálculos sobre quanto lhe vou colocar na mão aberta. Ou talvez não dê nada, saberá lá ela. Imagino-a a carregar a arma de arremesso verbal com a frase repetida tantas vezes ao longo do dia. Estou à sua frente e cumprimento-a com um olá e atiro de supetão: já há uns tempos que ando para trocar umas impressões consigo. Posso falar? Não leva a mal? Abrindo os olhos de admiração opera uma metamorfose: os dois pontos negros parecem iluminar-se e o rosto abre-se como um botão de rosa. E responde: “claro que não levo a mal!”. Atiro a primeira pergunta que vai fazer desenrolar a meada: então diga-me, sendo você tão nova, por qual a razão de andar aqui a pedir todos os dias?
Porque preciso, senhor! Tenho 46 anos, vivo ali para os lados da Estação Velha, numa casa camarária. Estou desempregada e recebo do RSI, Rendimento Social de Inserção, cerca de 180 euros. Estou a frequentar um curso de bordados. Vivo com um companheiro. Tem 63 anos mas é muito doente. Tem uma série de complicações e até varizes nas pernas. Ele é muito meu amigo, não me obriga a vir pedir mas, como o comer falta, lá me vai dizendo: vai até lá. Vai! E eu venho. É certo que pago só 5 euros de renda e mais 15 por uma territa que o meu homem cultiva mas o dinheiro não chega. Sabe que tenho lá agora coelhinhos? São tão lindos! Assim pequeninos –e exemplifica com as mãos, ao mesmo tempo que sorri como uma criança. Tenho lá também couves. Quando for daqui vou ali ao Pingo Doce comprar uma carne e vou fazer sopa. Custa muito pedir, acredite! Custa mesmo! Agora até já estou mais habituada. Uma pessoa adapta-se, não é? Mas o esforço vale a pena. Tiro quase sempre à volta de 20 euros. É isto que nos ajuda a viver. Mas custa muito, repito. Costumo ir para ali para a porta da Igreja de Santa Cruz. O que mais me faz sentir o sofrimento é quando vejo pessoas conhecidas. Apetece-me enterrar pelo chão abaixo. Encontro aqui na rua gente boa e gente má. Ainda há dias passou uma mulher –você sabia que as mulheres são muito piores do que os homens? Algumas são autênticas megeras!-, ela olhou para mim e disse: “vá trabalhar sua vaca!”. Eu não trato mal ninguém e só dá quem quer, mas ali passei-me completamente dos carretos. E dei-lhe o troco merecido. Mas, felizmente, há pessoas muito boas, olhe que, ainda não passou muito tempo, um senhor, parou, puxou da carteira e deu-me 20 euros. Uma fortuna, senhor! Olhe que só não me atirei a ele, com um abraço, e lhe dei dois beijos porque tive vergonha! Aparece de tudo. Muito obrigado por falar comigo, senhor!”


O RESTAURADOR OLEX

Volta e meia, na tal síndrome de carneirada, somos acometidos de uma vaga de indignação visando áreas concretas da nossa vida comunitária rústica e urbana. Nesta altura do campeonato discute-se o património material, no manter e no seu restauro. De repente, com a possibilidade dos quadros de Miró serem vendidos passámos todos a ser especialistas de arte.
Num outro caso que mais abaixo falarei, o estranho nisto tudo é que mesmo os consagrados reconhecidos especialistas e responsáveis pela manutenção patrimonial, como se tivessem acordado de um longo sono letárgico, só agora, a reboque de uma tal opinião facebookiana, com uma vitalidade de Viagra, derrubam tudo e todos a montante e a jusante. Ou seja, durante vários anos, assobiando para o ar, deixaram que o tempo destruísse verdadeiros tesouros e agora, depois de alguém ter tomado uma decisão, boa ou a melhor possível dentro do contexto, pressionados pela onda de choque cibernética, disparam em todas as direções e, com as suas balas de verve viperina, destroem o situacionismo no que era, matam o que foi feito e, buscando uma Eugenia purista, como uma interrupção de gravidez em que só verão a luz os perfeitos, evitam que, para o futuro, se recupere a mínima obra em declínio. De aqui em diante, os responsáveis de qualquer catedral, capelinha ou museu terão medo de restaurar seja lá o que for e o desleixo –que sempre foi e marca a nossa forma de estar- será o caminho. Deixarão ao abandono grandes riquezas patrimoniais e que o tempo se encarregará de aniquilar.
Antes de continuar, primeiro vou dar uma definição de arte. Segundo a Wikipédia, “é uma técnica ou habilidade entendida à atividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa a partir da perceção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”. Simplificando e dando a minha versão, arte poderá ser tudo, vivo ou inerte, que pela sua forma material ou imaterial -sons, odores, paladares, postura- toque os nossos sentidos e apele para um segundo olhar.
A seguir, vou fazer duas ressalvas. A primeira é que não conheço pessoalmente qualquer interveniente na questão que vou centrar-me. A segunda, embora venda e conviva com arte há cerca de duas décadas assumo que, pela elevada subjetividade intrínseca e por ser um mundo tão vasto de conhecimento, pela minha incomensurável ignorância, admito, com humildade, perceber pouco do métier. Se me for pedida opinião, será sempre a minha, e dividir-se-á entre o “conheço o autor”, “não conheço” e “gosto” e “não gosto”.
E agora sim, vou então focar o assunto que intoxica a opinião pública nas redes sociais: o restauro das imagens sacras no Santuário de Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital. Vamos começar pelo restauro, feito em 2007, das 13 imagens que compõem a Ceia de Cristo, em Aldeia das Dez, sobre responsabilidade de Miguel Vieira Duque e por alunos da Universidade Sénior de Coimbra. Citando o Diário de Coimbra, “O Secretariado Nacional dos bens Culturais da Igreja, serviço tutelado pela Conferência Episcopal Portuguesa, considerou o restauro de 13 esculturas do Santuário da Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital, como “criminoso, danoso e prejudicial”. (…) Não estamos a falar de objetos musealizados, mas de obras de arte sacra afetas ao culto que foram tratadas como bonecos e não como objetos de arte sacra como deveria ser. (…) nos inúmeros casos em que tal sucede, o que antes de mais se observa é o completo desrespeito pela obra de arte, neste caso sujeita a gostos pessoais de quem é responsável por estas intervenções”. Chegados aqui, talvez aqui dê para perguntar se “criminoso, danoso e prejudicial” não serão os factos de, por um lado, deixar passar meia dúzia de anos até à classificação desta tarefa e, por outro, mandar para o charco um homem, que goste-se ou não do resultado fez o seu trabalho, e uma escola de séniores que, concorde-se ou não, estão a tentar serem úteis à sociedade, depois de já terem dado a sua parte, e renegarem o sofá. Como se fosse pouco, veio o insuspeitável Jornal de Notícias publicar em parangonas que o desventurado Miguel Duque (ainda bem que não é Vasconcelos) já andou a vender cachorros numa roulotte. É caso para perguntar se este trabalho envergonha alguém. Veio também a terreiro a Associação Profissional de conservadores Restauradores de Portugal afirmar que “no panorama atual, assiste-se à proliferação de cursos e ações de formação ministrados, por vezes, por formadores que não possuem a formação académica exigida”. Pode interrogar-se se os frescos da Santa Ceia, na Capela Sistina do Vaticano, pintados por Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, Botticelli e outros, em finais do século XV, também teriam a “formação académica exigida”?
Creio que o nosso maior problema é o excedente de especialistas. Estamos cheios deles! Não haverá um especialista-mor que ponha tento, bom senso, nestas ilustres cabeças pensantes?


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