LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O (A)TRIBUTO"; "A MULHER QUE ESTENDE A MÃO"; "O RESTAURADOR OLEX".
REFLEXÃO: O (A)TRIBUTO
Com uma verba atribuída de 52 mil euros, o executivo
camarário deliberou, nesta última segunda-feira, organizar um torneio de
futebol juvenil em homenagem a Jorge Lemos, ex-vereador e deputado municipal
pelo Partido Socialista e dirigente da Associação de Futebol de Coimbra, e
recentemente falecido.
Conheci relativamente bem
o saudoso engenheiro Lemos. Pela sua honestidade, simplicidade e alheio a
homenagens, se fosse vivo, tenho a certeza de que não aceitaria tal tributo.
Com toda a deferência pela sua grata memória, em especulação, quase apostaria
que se o pudesse fazer, na sua voz calma e assertiva, proclamaria: “estes gajos são doidos! Andam a gastar
dinheiro com iniciativas sem nexo. O que fiz eu para merecer ser venerado desta
maneira com gastos públicos em tempo de crise, quando há tantos munícipes a
passar mal? Se o partido me quer consagrar, está no seu direito e que o faça
através de verbas próprias e dos militantes. Assim, peço muita desculpa, mas
dispenso esta contribuição póstuma. Tenham mais respeito pela pessoa séria que
fui. Nunca misturei funções públicas com privadas. Nunca alinhei em festas de
elevação partidária disfarçadas.”
A MULHER QUE ESTENDE A MÃO
Nos
últimos tempos, com tendência a aumentar, tenho verificado que uns e outros nas
ruas largas, sem pejo nem recalcamento, estendem a mão à caridade com a
lengalenga repetida: “por favor, dê-me
uma moeda para comprar pão”. São pessoas na casa dos quarenta, com aspeto bem arranjado –pessoas como eu e
você, diria com algum cinismo- e ar saudável. Certamente como a maioria, olho
para eles com algum desdém e tento ignorar. Se
ao menos fossem velhinhos, maltrapilhos e esclerosados, ainda vá lá, agora
pessoas novas e saudáveis? Penso para mim, em busca da contrição e do
perdão moral de não ter comparticipado, enquanto desvio o passo. Que diabo, até parece que o ato de pedir
está transformado numa coisa corriqueira –continuo a pensar com meus
botões. Tenho saudades do tempo em que
pedir alguma coisa a alguém era uma ação farisaica que implicava vergonha, um
estigma de pobreza que mandava para o charco a alma de quem rogava. Agora não.
Como se num clarão ofuscante, por obra e graça do Divino Espírito Santo, todos
nos sentíssemos indigentes e mais iguais ao outro que passa, foi-se a vergonha
e ressalta o espírito de sobrevivência. E lá vem a ladainha: “uma moedinha para
comprar pão, por favor!”
Já por várias vezes me cruzei com ela na Rua
da Sofia e me estendeu a mão. É uma mulher baixa, anafada, de olhar triste
quando em descanso e com as maçãs do rosto rosadas. Veste com simplicidade, uma
mulher suburbana, dos arredores da cidade –penso com meus botões. À medida que
me aproximo, imagino que olhando para mim, para a minha forma de vestir, fará
cálculos sobre quanto lhe vou colocar na mão aberta. Ou talvez não dê nada,
saberá lá ela. Imagino-a a carregar a arma de arremesso verbal com a frase
repetida tantas vezes ao longo do dia. Estou à sua frente e cumprimento-a com
um olá e atiro de supetão: já há uns tempos que ando para trocar umas
impressões consigo. Posso falar? Não leva a mal? Abrindo os olhos de
admiração opera uma metamorfose: os dois pontos negros parecem iluminar-se e o rosto
abre-se como um botão de rosa. E responde: “claro
que não levo a mal!”. Atiro a primeira pergunta que vai fazer desenrolar a
meada: então diga-me, sendo você tão
nova, por qual a razão de andar aqui a pedir todos os dias?
“Porque preciso, senhor! Tenho
46 anos, vivo ali para os lados da Estação Velha, numa casa camarária. Estou
desempregada e recebo do RSI, Rendimento Social de Inserção, cerca de 180
euros. Estou a frequentar um curso de bordados. Vivo com um companheiro. Tem 63
anos mas é muito doente. Tem uma série de complicações e até varizes nas
pernas. Ele é muito meu amigo, não me obriga a vir pedir mas, como o comer
falta, lá me vai dizendo: vai até lá. Vai! E eu venho. É certo que pago só 5
euros de renda e mais 15 por uma territa que o meu homem cultiva mas o dinheiro
não chega. Sabe que tenho lá agora coelhinhos? São tão lindos! Assim pequeninos
–e exemplifica com as mãos, ao mesmo tempo que sorri como uma criança. Tenho lá também couves. Quando for daqui
vou ali ao Pingo Doce comprar uma carne e vou fazer sopa. Custa muito pedir,
acredite! Custa mesmo! Agora até já estou mais habituada. Uma pessoa adapta-se,
não é? Mas o esforço vale a pena. Tiro quase sempre à volta de 20 euros. É isto
que nos ajuda a viver. Mas custa muito, repito. Costumo ir para ali para a
porta da Igreja de Santa Cruz. O que mais me faz sentir o sofrimento é quando
vejo pessoas conhecidas. Apetece-me enterrar pelo chão abaixo. Encontro aqui na
rua gente boa e gente má. Ainda há dias passou uma mulher –você sabia que as mulheres
são muito piores do que os homens? Algumas são autênticas megeras!-, ela olhou
para mim e disse: “vá trabalhar sua vaca!”. Eu não trato mal ninguém e só dá
quem quer, mas ali passei-me completamente dos carretos. E dei-lhe o troco
merecido. Mas, felizmente, há pessoas muito boas, olhe que, ainda não passou
muito tempo, um senhor, parou, puxou da carteira e deu-me 20 euros. Uma
fortuna, senhor! Olhe que só não me atirei a ele, com um abraço, e lhe dei dois
beijos porque tive vergonha! Aparece de tudo. Muito obrigado por falar comigo,
senhor!”
O RESTAURADOR OLEX
Volta e meia, na tal síndrome de carneirada,
somos acometidos de uma vaga de indignação visando áreas concretas da nossa
vida comunitária rústica e urbana. Nesta altura do campeonato discute-se o
património material, no manter e no seu restauro. De repente, com a
possibilidade dos quadros de Miró serem vendidos passámos todos a ser
especialistas de arte.
Num outro caso que mais abaixo
falarei, o estranho nisto tudo é que mesmo os consagrados reconhecidos
especialistas e responsáveis pela manutenção patrimonial, como se tivessem
acordado de um longo sono letárgico, só agora, a reboque de uma tal opinião facebookiana, com uma vitalidade
de Viagra, derrubam tudo e todos a montante e a jusante. Ou seja, durante
vários anos, assobiando para o ar, deixaram que o tempo destruísse verdadeiros
tesouros e agora, depois de alguém ter tomado uma decisão, boa ou a melhor
possível dentro do contexto, pressionados pela onda de choque cibernética,
disparam em todas as direções e, com as suas balas de verve viperina, destroem
o situacionismo no que era, matam o que foi feito e, buscando uma Eugenia purista, como uma interrupção de
gravidez em que só verão a luz os perfeitos, evitam que, para o futuro, se
recupere a mínima obra em declínio. De aqui em diante, os responsáveis de
qualquer catedral, capelinha ou museu terão medo de restaurar seja lá o que for
e o desleixo –que sempre foi e marca a nossa forma de estar- será o caminho.
Deixarão ao abandono grandes riquezas patrimoniais e que o tempo se encarregará
de aniquilar.
Antes de continuar, primeiro vou
dar uma definição de arte. Segundo a Wikipédia, “é uma técnica ou habilidade entendida à atividade humana ligada a
manifestações de ordem estética ou comunicativa a partir da perceção, das
emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias
da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”.
Simplificando e dando a minha versão, arte poderá ser tudo, vivo ou inerte, que
pela sua forma material ou imaterial -sons, odores, paladares, postura- toque
os nossos sentidos e apele para um segundo
olhar.
A seguir, vou fazer duas
ressalvas. A primeira é que não conheço pessoalmente qualquer interveniente na
questão que vou centrar-me. A segunda, embora venda e conviva com arte há cerca
de duas décadas assumo que, pela elevada subjetividade intrínseca e por ser um
mundo tão vasto de conhecimento, pela minha incomensurável ignorância, admito,
com humildade, perceber pouco do métier.
Se me for pedida opinião, será sempre a minha, e dividir-se-á entre o “conheço o autor”, “não conheço” e “gosto” e
“não gosto”.
E agora sim, vou então focar o assunto
que intoxica a opinião pública nas redes sociais: o restauro das imagens sacras
no Santuário de Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital. Vamos
começar pelo restauro, feito em 2007, das 13 imagens que compõem a Ceia de
Cristo, em Aldeia das Dez, sobre responsabilidade de Miguel Vieira Duque e por
alunos da Universidade Sénior de Coimbra. Citando o Diário de Coimbra, “O Secretariado Nacional dos bens Culturais
da Igreja, serviço tutelado pela Conferência Episcopal Portuguesa, considerou o
restauro de 13 esculturas do Santuário da Nossa Senhora das Preces, em Oliveira
do Hospital, como “criminoso, danoso e prejudicial”. (…) Não estamos a falar de
objetos musealizados, mas de obras de arte sacra afetas ao culto que foram
tratadas como bonecos e não como objetos de arte sacra como deveria ser. (…)
nos inúmeros casos em que tal sucede, o que antes de mais se observa é o
completo desrespeito pela obra de arte, neste caso sujeita a gostos pessoais de
quem é responsável por estas intervenções”. Chegados aqui, talvez aqui dê
para perguntar se “criminoso, danoso e
prejudicial” não serão os factos de, por um lado, deixar passar meia dúzia
de anos até à classificação desta tarefa e, por outro, mandar para o charco um
homem, que goste-se ou não do resultado fez o seu trabalho, e uma escola de
séniores que, concorde-se ou não, estão a tentar serem úteis à sociedade,
depois de já terem dado a sua parte, e renegarem o sofá. Como se fosse pouco,
veio o insuspeitável Jornal de Notícias publicar em parangonas que o desventurado Miguel Duque (ainda bem que
não é Vasconcelos) já andou a vender cachorros numa roulotte. É caso para perguntar se este trabalho envergonha alguém.
Veio também a terreiro a Associação Profissional de conservadores Restauradores
de Portugal afirmar que “no panorama
atual, assiste-se à proliferação de cursos e ações de formação ministrados, por
vezes, por formadores que não possuem a formação académica exigida”. Pode
interrogar-se se os frescos da Santa Ceia, na Capela Sistina do Vaticano,
pintados por Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, Botticelli e outros, em
finais do século XV, também teriam a “formação
académica exigida”?
Creio que o nosso maior problema
é o excedente de especialistas. Estamos cheios deles! Não haverá um especialista-mor
que ponha tento, bom senso, nestas ilustres cabeças pensantes?
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