quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

"DÊ-ME UMA MOEDA P´RA COMPRAR PÃO"



Confesso que quando inicio um texto sobre a Baixa há logo uma voz cá dentro que grita: “vê lá o que vais escrever! Mais tristeza? Mas a Baixa já é uma melancolia! Tem dó de quem faz um esforço danado para passar do primeiro parágrafo de um qualquer escrito teu! Faz um favor ao povo, escreve qualquer coisinha com graça, algo que nos faça rir, homem de Deus!”
O problema é que, apesar dos avisos constantes do meu desconhecido (in)consciente, não consigo atingir a metamorfose, sobretudo se pretendo contar um qualquer episódio que me toque e cause mágoa. É evidente que se trata de deficiência. É lógico que não sou escritor, nem coisa que o valha, porque se o fosse escreveria o contrário do pretendido, ou até brincaria com a desgraça alheia. Isto tudo para me servir de introdução e dizer que vou carpir mais mágoas. O meu alter-ego, ou seja lá o que for, e os leitores que me acompanham diariamente que façam o favor de desculpar mas aí vai disto. Como quem diz, lá vai mais choradinho de baba e ranho. Tenho reparado, nos últimos dias, que cada vez mais se vêem pessoas, a pedir, de mão estendida pelo meio de quem passa. Estes novos mendigos fogem ao padrão de que estamos habituados, que é o quadro recorrente de ver alguém sentado no chão, acompanhado de uma lengalenga. Os novos pedintes que trago à colação vestem bem. Com algum cinismo escrevo, é gente como nós. São pessoas de meia-idade e mais velhos e interpelam-nos no meio da rua com a seguinte frase: “dê-me uma moeda para comprar pão, por favor!”
Hoje, à hora do almoço, em vários pontos da Baixa, fui demandado por três mulheres, todas com a tal frase que fere o coração. Duas com cerca de 40 anos e uma já mais velha, junto ao banco Montepio Geral, no Largo da Portagem. Teria cerca de 65 anos e vestia razoavelmente bem. Apenas um pormenor saltava à vista, apesar de chover, transportava nos pés uns chinelos por onde a água entrava e saía sem pedir licença. Se com as anteriores candidatas ao óbolo não fiz perguntas, com esta falei mesmo –será eticamente certo interrogar alguém que pede? Damos ou não damos, ponto final e parágrafo. É assim? Ou não? Quem dá terá o direito de saber o que aconteceu? Se calhar tem! Até diria mais, não é faltar ao respeito mas antes uma manifestação de preocupação. Posso garantir que a maioria que dá a moeda fá-lo mecanicamente –como se de uma obrigação moral se tratasse-, sem sequer olhar os olhos de quem solicita ajuda. É óbvio também que o acto de pedir está transformado numa vulgaridade. Hoje todo o mundo suplica a moeda. É para a Liga não sei das quantas; é para associação dos desgraçadinhos; é para isto e para aquilo. E é exactamente por este abuso de confiança que muitos de nós, incluindo-me naturalmente, já fogem destes cravas que, diariamente, infestam a cidade. O resultado não pode ser pior. Torna-nos insensíveis a qualquer situação de sofrimento alheio. Endurece-nos.
Voltando à senhora que estendia a mão junto ao Montepio, quis saber da razão de pedir uma moeda para comprar pão. Uma vez que me transmitiu que tinha fome, porque não vai comer à Cozinha Económica? Interroguei. Respondeu a senhora: “acha que eu vou comer à Cozinha económica? Acha? Eu não me misturo, está a perceber? Eu estive em Moçambique… já vivi muito bem! Homessa!”… E virou-me as costas em direcção a um outro qualquer transeunte talvez menos chato do que eu.


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