segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

EDITORIAL: O RESTAURADOR OLEX



Volta e meia, na tal síndrome de carneirada, somos acometidos de uma vaga de indignação visando áreas concretas da nossa vida comunitária rústica e urbana. Nesta altura do campeonato discute-se o património material, no manter e no seu restauro. De repente, com a possibilidade dos quadros de Miró serem vendidos, passámos todos a ser especialistas de arte. 
Num outro caso que mais abaixo falarei, o estranho nisto tudo é que mesmo os consagrados reconhecidos especialistas e responsáveis pela manutenção do património, como se tivessem acordado de um longo sono letárgico, só agora, a reboque de uma tal opinião facebookiana, com uma vitalidade de Viagra, derrubam tudo e todos a montante e a jusante. Ou seja, durante vários anos, assobiando para o ar, deixaram que o tempo destruísse verdadeiros tesouros e agora, depois de alguém ter tomado uma decisão, boa ou a melhor possível dentro do contexto, pressionados pela onda de choque cibernética, disparam em todas as direcções e, com as suas balas de verve viperina, destroem o situacionismo no que era, matam o que foi feito e, buscando uma Eugenia purista, como uma interrupção de gravidez em que só verão a luz os perfeitos, evitam que, para o futuro, se recupere a mínima obra em declínio. De aqui em diante, os responsáveis de qualquer catedral, capelinha ou museu terão medo de restaurar seja lá o que for e o desleixo -que sempre foi e marca a nossa forma de estar- será o caminho. Deixarão ao abandono grandes riquezas patrimoniais e que o tempo se encarregará de aniquilar.
Antes de continuar, primeiro vou dar uma definição de arte. Segundo a Wikipédia, “é uma técnica ou habilidade entendida à actividade humana ligada a manifestações de ordem estética ou comunicativa a partir da percepção, das emoções e das ideias, com o objetivo de estimular essas instâncias da consciência e dando um significado único e diferente para cada obra”. Simplificando e dando a minha versão, arte poderá ser tudo, vivo ou inerte, que pela sua forma material ou imaterial -sons, odores, paladares, postura- toque os nossos sentidos e apele para um segundo olhar.
A seguir, vou fazer duas ressalvas. A primeira é que não conheço pessoalmente qualquer interveniente na questão que vou centrar-me. A segunda, embora venda e conviva com arte há cerca de duas décadas assumo que, pela elevada subjectividade intrínseca e por ser um mundo tão vasto de conhecimento, pela minha incomensurável ignorância, admito, com humildade, perceber pouco do métier. Se me for pedida opinião, será sempre a minha, e dividir-se-á entre o “conheço o autor”, “não conheço” e “gosto” e “não gosto”.
E agora sim, vou então focar o assunto que intoxica a opinião pública nas redes sociais: o restauro das imagens sacras no Santuário de Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital. Vamos começar pelo restauro, feito em 2007, das 13 imagens que compõem a Ceia de Cristo, em Aldeia das Dez, sobre responsabilidade de Miguel Vieira Duque e por alunos da Universidade Sénior de Coimbra. Citando o Diário de Coimbra, “O Secretariado Nacional dos bens Culturais da Igreja, serviço tutelado pela Conferência Episcopal Portuguesa, considerou o restauro de 13 esculturas do Santuário da Nossa Senhora das Preces, em Oliveira do Hospital, como “criminoso, danoso e prejudicial”. (…) Não estamos a falar de objectos musealizados, mas de obras de arte sacra afectas ao culto que foram tratadas como bonecos e não como objectos de arte sacra como deveria ser. (…) nos inúmeros casos em que tal sucede, o que antes de mais se observa é o completo desrespeito pela obra de arte, neste caso sujeita a gostos pessoais de quem é responsável por estas intervenções”. Chegados aqui, talvez aqui dê para perguntar se “criminoso, danoso e prejudicial” não serão os factos de, por um lado, deixar passar meia dúzia de anos até à classificação desta tarefa e, por outro, mandar para o charco um homem, que goste-se ou não do resultado fez o seu trabalho, e uma escola de séniores que, concorde-se ou não, estão a tentar serem úteis à sociedade, depois de já terem dado a sua parte, e renegarem o sofá. Como se fosse pouco, veio o insuspeitável Jornal de Notícias publicar em parangonas que o desventurado Miguel Duque (ainda bem que não é Vasconcelos) já andou a vender cachorros numa roulotte. É caso para perguntar se este trabalho envergonha alguém. Veio também a terreiro a Associação Profissional de conservadores Restauradores de Portugal afirmar que “no panorama actual, assiste-se à proliferação de cursos e acções de formação ministrados, por vezes, por formadores que não possuem a formação académica exigida”. Pode interrogar-se se os frescos da Santa Ceia, na Capela Sistina do Vaticano, pintados por Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Rafael, Botticelli e outros, em finais do século XV, também teriam a “formação académica exigida”?
Creio que o nosso maior problema é o excedente de especialistas. Estamos cheios deles! Não haverá um especialista-mor que ponha tento, bom-senso, nestas ilustres cabeças pensantes?

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