quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

EDITORIAL: A LEI-FREIO CONTRA O PROTESTO



A semana passada um cidadão da Baixa de Coimbra recebeu uma comunicação de “Serviço de Polícia Municipal” (PM) a apresentar-lhe a pagamento uma infracção de trânsito por estacionamento indevido no valor de 19,95 euros. Segundo declarações do citado, “dirigi-me à sede da Polícia Municipal para liquidar a verba indicada. Apresentei para pagamento uma nota de dez, uma moeda de dois, duas moedas de um euro e várias peças soltas para fazer o restante. Não aceitaram. Foi argumentado que só recebiam notas e que a única solução era eu ir ao banco trocar. Ainda invoquei o facto de, sendo pobre e estar desempregado, de não ter mais do que levava, certinho, para pagar mas não me ouviram. Era assim e mais nada! Apresentei uma reclamação escrita no livro”.
Depois de escrever o texto no blogue, solicitei à Polícia Municipal um esclarecimento sobre este procedimento. Por ordem do senhor Comandante Celso Marques –a quem agradeço a gentileza- foi-me remetida a informação fundamentada, justificando o procedimento do agente, e substantivada na lei. No caso, trata-se do artigo 7.º, ponto 2, do Decreto-lei nº 246/2007, de 26 de Junho, que transcreve o seguinte: “Com excepção do Estado, através das Caixas do Tesouro, do Banco de Portugal e das instituições de crédito cuja actividade consiste em receber depósitos junto do público, ninguém é obrigado a aceitar, num único pagamento, mais de  50 moedas correntes.”
Gosto das coisas bem esclarecidas. Voltei a ir falar com o cidadão reclamante. Afinal eram ou não mais de 50 moedas? Perguntei. Respondeu assim: “juntamente com uma nota de 10 euros, levei um saco com moedas –não as contei, mas deveriam ser à volta de umas setenta ou oitenta, foram as que consegui juntar para pagar a multa- e apresentei-me na sede da PM, na Avenida Sá da Bandeira. A agente que me atendeu, logo que coloquei o saco com as moedas em cima do balcão, disse que não era obrigada a receber tanta moeda. Perguntou se eu queria a cópia do Decreto-lei onde se sustentava que não era obrigada a receber nesta forma de pagamento. Levou o saco para dentro e foi mostrá-lo a alguém –presumo que ao chefe. Voltou e tornou a entregar-me sem falar no limite de 50 moedas. Disse-me que eu teria de ir ao banco trocar por notas. Acontece que eu não tinha mais dinheiro. Aliás foi com a ajuda de amigos que consegui juntar aquele dinheiro. Acho que não fui bem esclarecido.”
Depois destes três passos, ouvir o munícipe, ouvir a entidade visada e escrever, podemos fazer um exercício de análise metodológica. Ora lendo as declarações das partes, partindo da tese (do cidadão) passando à antitese (da PM) chegamos à conclusão (que será sempre a nossa). Começamos logo por tropeçar na legislação instrumental –que, a começar por mim, se calhar, todos desconhecíamos. Como é óbvio, trata-se de uma lei-garrote, uma cláusula-barreira que visa suster a prática de, como meio de revolta e protesto, levar cidadãos a empregar moedas de baixo valor fiduciário como meios de pagamento. Está certo? Está errado? Esta resposta dependerá sempre da observação, independente ou não, de cada um. Uma ilação se extrai: cada vez mais a lei, que deveria ser geral -no sentido de aleatória-, está transformada em específica e direccionada casos concretos. Quem sabe de Direito –não é meu caso, faço parte dos ignorantes- tem noção que as malhas da rede da lei devem ter acopladas uma ambiguidade entre o não ser demasiadamente alargadas, para que não passe tudo, e o absurdo do restritivo que, quando são muito apertadas, implicam o cercear de direitos, liberdades e garantias legalmente constituídos. Quando os buracos da malha são tão estreitos que nada passa, estamos num Estado policial, onde o justicialismo tecnocrático impera e o constitucional direito à indignação é ferido na sua liberdade. O cidadão perde a sua natural flexibilização entre a prevaricação e o cumprimento e transforma-se em coisa robotizada nascido para não sair da rota formatada.
Porque vejamos, dizia Cícero, menos de um século antes do nascimento de Cristo, que a Lei é a suprema das virtudes na res publica, na sua boa-fé entre o legislador, o juiz aplicador e o povo que a recebe e entende como instrumento de paz, enquanto saneador de conflitos, e de conciliação na sua aceitação de justeza. Ou seja, como num contrato de negócio público, todas as partes envolvidas têm de estar de coração aberto na intenção de, no cumprimento da justiça, lesar o menos possível os interesses de cada um –estas teorias filosóficas viriam a radicar no Contrato Social defendido por Maquiavel, Hobbes e Rosseau, nos séculos XVII/XVIII.
Depois deste palavreado para boi dormir, facilmente se chega à conclusão de que estamos perante uma norma abusiva, intrusiva da cidadania, cerceadora da autonomia, descredibilizadora da moeda enquanto instrumento de troca. O entendermos que com este decreto se pretende atingir um fim lícito, no sentido de que é legalmente imposto pela sua força coerciva, por se tratar de uma lei aberrante não leva à aceitação pública e de que, tendo em mente um objectivo localizado, se podem calcar os mais elementares princípios comunitários de aceitação geral.
Em jeito de conclusão, se, por um lado, do ponto de vista legal a agente da PM facilmente se escuda na lei e, mesmo que esta seja disparatada, nada haverá a apontar-lhe. Por outro, no lado ético-moral, enquanto servidora do cidadão, no mínimo, penso que deve explicar sem fadiga e ser o mais clara possível na aplicação das normas.

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