A semana passada um cidadão da Baixa de
Coimbra recebeu uma comunicação de “Serviço de Polícia Municipal” (PM) a
apresentar-lhe a pagamento uma infracção de trânsito por estacionamento indevido
no valor de 19,95 euros. Segundo declarações do citado, “dirigi-me à sede da Polícia Municipal para liquidar a verba indicada.
Apresentei para pagamento uma nota de dez, uma moeda de dois, duas moedas de um
euro e várias peças soltas para fazer o restante. Não aceitaram. Foi
argumentado que só recebiam notas e que a única solução era eu ir ao banco
trocar. Ainda invoquei o facto de, sendo pobre e
estar desempregado, de não ter mais do que levava, certinho, para pagar mas não
me ouviram. Era assim e mais nada! Apresentei uma reclamação escrita no livro”.
Depois de escrever o
texto no blogue, solicitei à Polícia Municipal um esclarecimento sobre este
procedimento. Por ordem do senhor Comandante Celso Marques –a quem agradeço a
gentileza- foi-me remetida a informação fundamentada, justificando o
procedimento do agente, e substantivada na lei. No caso, trata-se do artigo 7.º,
ponto 2, do Decreto-lei nº 246/2007, de 26 de Junho, que transcreve o seguinte:
“Com
excepção do Estado, através das Caixas do Tesouro, do Banco de Portugal e das
instituições de crédito cuja actividade consiste em receber depósitos junto do
público, ninguém é obrigado a aceitar, num único pagamento, mais de 50
moedas correntes.”
Gosto das coisas bem esclarecidas. Voltei a ir falar com o cidadão
reclamante. Afinal eram ou não mais de 50 moedas? Perguntei. Respondeu assim: “juntamente
com uma nota de 10 euros, levei um saco com moedas –não as contei, mas deveriam
ser à volta de umas setenta ou oitenta, foram as que consegui juntar para pagar
a multa- e apresentei-me na sede da PM, na Avenida Sá da Bandeira. A agente que
me atendeu, logo que coloquei o saco com as moedas em cima do balcão, disse que
não era obrigada a receber tanta moeda. Perguntou se eu queria a cópia do
Decreto-lei onde se sustentava que não era obrigada a receber nesta forma de
pagamento. Levou o saco para dentro e foi mostrá-lo a alguém –presumo que ao
chefe. Voltou e tornou a entregar-me sem falar no limite de 50 moedas. Disse-me
que eu teria de ir ao banco trocar por notas. Acontece que eu não tinha mais
dinheiro. Aliás foi com a ajuda de amigos que consegui juntar aquele dinheiro.
Acho que não fui bem esclarecido.”
Depois destes três passos, ouvir o munícipe, ouvir a entidade visada e escrever,
podemos fazer um exercício de análise metodológica. Ora lendo as declarações
das partes, partindo da tese (do cidadão) passando à antitese (da
PM) chegamos à conclusão (que será sempre a nossa). Começamos logo por
tropeçar na legislação instrumental –que, a começar por mim, se calhar, todos
desconhecíamos. Como é óbvio, trata-se de uma lei-garrote, uma
cláusula-barreira que visa suster a prática de, como meio de revolta e
protesto, levar cidadãos a empregar moedas de baixo valor fiduciário como meios
de pagamento. Está certo? Está errado? Esta resposta dependerá sempre da observação,
independente ou não, de cada um. Uma ilação se extrai: cada vez mais a lei, que
deveria ser geral -no sentido de aleatória-, está transformada em específica e direccionada casos concretos. Quem sabe de Direito –não é meu caso, faço parte dos ignorantes- tem
noção que as malhas da rede da lei devem ter acopladas uma ambiguidade
entre o não ser demasiadamente alargadas, para que não passe tudo, e o absurdo
do restritivo que, quando são muito apertadas, implicam o cercear de direitos,
liberdades e garantias legalmente constituídos. Quando os buracos da malha são
tão estreitos que nada passa, estamos num Estado policial, onde o justicialismo
tecnocrático impera e o constitucional direito à indignação é ferido na sua
liberdade. O cidadão perde a sua natural flexibilização entre a prevaricação e o
cumprimento e transforma-se em coisa robotizada nascido para não sair da rota
formatada.
Porque vejamos, dizia Cícero, menos de um século antes do nascimento de
Cristo, que a Lei é a suprema das virtudes na res publica, na sua boa-fé
entre o legislador, o juiz aplicador e o povo que a recebe e entende como
instrumento de paz, enquanto saneador de conflitos, e de conciliação na sua
aceitação de justeza. Ou seja, como num contrato de negócio público, todas as
partes envolvidas têm de estar de coração aberto na intenção de, no cumprimento
da justiça, lesar o menos possível os interesses de cada um –estas teorias filosóficas
viriam a radicar no Contrato Social defendido por Maquiavel, Hobbes e
Rosseau, nos séculos XVII/XVIII.
Depois deste palavreado para boi dormir, facilmente se chega à
conclusão de que estamos perante uma norma abusiva, intrusiva da cidadania, cerceadora da autonomia, descredibilizadora da moeda enquanto instrumento de troca. O entendermos que
com este decreto se pretende atingir um fim lícito, no sentido de que é
legalmente imposto pela sua força coerciva, por se tratar de uma lei aberrante não
leva à aceitação pública e de que, tendo em mente um objectivo localizado, se
podem calcar os mais elementares princípios comunitários de aceitação geral.
Em jeito de conclusão, se, por um lado, do ponto de vista legal a
agente da PM facilmente se escuda na lei e, mesmo que esta seja disparatada, nada
haverá a apontar-lhe. Por outro, no lado ético-moral, enquanto servidora do
cidadão, no mínimo, penso que deve explicar sem fadiga e ser o mais clara possível na
aplicação das normas.
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