quinta-feira, 11 de abril de 2019

BAIXA: A (S) CRISE(S) DO COMÉRCIO TRADICIONAL

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



Em verdade e consequência, porque estamos todos encadeados,
num processo incessante de pescadinha de rabo-na-boca,
as lojas foram encerrando por falta de moradores-consumidores
e à medida que foram fechando, levando atrás de si milhares de
empregados, fomos assistindo devagarinho ao empobrecimento
da maioria e ao desaparecimento paulatino mas certo de todos. Naturalmente
que, causado por esta desertificação comercial e habitacional,
aumentou o consumo de droga e o sentimento de
insegurança nos seus frequentadores.”


Como escrevi antes-de-ontem aqui, alguém se deu ao trabalho de anonimamente, durante a noite anterior, colocar nas brechas das portas dos estabelecimentos um pequeno recorte onde, sobre o título “A Baixa está de luto”, perorava sobre o estado lastimoso do Centro Histórico. E terminava a missiva com “Comerciante desesperado”.
Provavelmente, as primeiras interrogações que nos atravessam serão: Quem é o autor? Por que o fez na qualidade de anónimo? Que razões subsistem para legitimar a sua condição?
Antes de entrar directamente nas respostas, vou fazer uma introdução alargada que, de certo modo, consubstanciam em parte uma explicação. E começo com uma frase que bem poderia ser atribuída a “La Palisse”: os comerciantes actuais (no qual me incluo), para o bem e para o mal, são o resultado de uma degradação acentuada do Centro Histórico. Verdade ou mentira? E se invertermos as premissas e escrevermos o contrário? Isto é, a Baixa actual é o resultado de uma degradação acentuada dos comerciantes.
Podia, lá isso podia, mas, para além de ser falso, não era a mesma coisa para o que pretendo defender. Como já escrevi em largas dezenas de textos no blogue, falando concretamente de Coimbra, o esvaziamento da zona antiga começou com a abertura das grandes superfícies, a Makro e o Continente, em 1993 – e continuou nos anos seguintes, até hoje, com o licenciamento de novas grandes áreas comerciais – mas não só. Também não se pode escamotear a incapacidade do mercado de rua se adaptar a novos horários praticados pelo grande comércio. Houve ainda outras razões que contribuíram para a sua queda económica.
Convém salientar que até aqui, princípio de 1990, todo o retalho multi-sectorial estava centralizado nesta área comercial instalada a céu aberto. Para Coimbra, considerada a capital do Centro, confluía toda a população entre Aveiro e Leiria.


OUTROS FACTORES EXÓGENOS


Por esta altura, a concorrer para o esvaziamento das zonas velhas das urbes, sistematizando ao país, o abandono do sector primário imposto pela então CEE, Comunidade Económica Europeia, e seguido à letra pelos governos de Cavaco Silva, como única saída possível, empurrou muitos milhares de pessoas para o comércio de rua. Com este forçado êxodo de agricultores, abrindo pontos de venda em tudo o que era vila e cidade, descentralizou-se a oferta.
Mais: em 1994, com uma indústria nacional frágil, Portugal aderiu à Organização Mundial do Comércio e escancarou as portas à entrada de produtos asiáticos. Nesta onda consumista de produtos sem grande qualidade, surgiram as “Lojas dos 300”. Por força do baratismo, começou o extermínio de um leque alargado de fábricas nacionais. Como exemplo, a fabricação de ferramentas, fechaduras, guarda-chuvas. Mais tarde, na primeira década do novo milénio, passaria aos têxteis. A seguir, no segundo assalto ao que sobrou, vieram as lojas de comerciantes chineses com utilidades domésticas e roupas, e a influenciar o aumento de rendas.
No que toca ao ramo alimentar, com políticas de preços de terra-queimada, o grande retalho rebenta completamente com a pequena mercearia de bairro. Hoje monopoliza completamente o sector.
Por outro lado, o rendimento das famílias foi caindo cada vez mais por força do aumento dos impostos directos e indirectos. Com a dívida pública a aumentar assustadoramente – em 1974 era 14% do Produto Interno Bruto (PIB), em 1995 andava pelos 95%, em 2012 somava 120% e em 2015 atingia a proximidade dos 130%.
Convém referir também a dívida privada que, por força de incentivos públicos -nomeadamente os juros bonificados à compra de casa -, entre 2000 e 2008 cresceu exponencialmente e deixou a parentada completamente vulnerável e sem reacção à crise mundial do subprime.
Por outro lado ainda, José Sócrates, a partir de 2005, num exacerbado neo-liberalismo que iria ter seguidor no governo de Passos Coelho, tende a liberalizar a Lei dos Saldos. Ficou a porta aberta às promoções nos shopping’s durante todo o ano, exercício na maioria das vezes de “dumping” que iria fazer desaparecer muitos sectores representados em pequenas lojas por este Portugal fora. Os exemplos são vários, mas lembremos as livrarias, os bazares de brinquedos, e as lojas de electrodomésticos, ferragens e outros. Estava em marcha o ciclone "adeus comércio de rua".
Uma outra ameaça quase invisível, entre constatações e paradoxos, que se tornará viral e destrutiva do tradicional, começava dar os primeiros passos: o comércio electrónico.
Por conseguinte, sempre em nome do interesse maior do consumidor e numa alegada democratização de acesso aos bens, paulatinamente fomos assistindo a vários movimentos contrários ao equilíbrio do pequeno comércio. Entre si, foram diminuindo a procura e alargando a oferta de produtos cada vez de pior qualidade mas de preço mais acessível.
É um princípio da Economia que, mesmo se a procura se mantiver estabilizada, quando a oferta aumenta os preços caem a pique. Portanto, a partir de 2000 a economia entra num ciclo de recessão. Por força das circunstâncias, perde-se o princípio de ganhar o mais possível na transacção para se perseguir somente a sobrevivência vendendo com as margens de lucro próximo do vermelho.
Os preços, por força de uma concorrência feroz, começam a cair para nunca mais pararem e geram uma deflação contínua – venda dos produtos ao consumidor sem provento e gerando falências em série – excepto os produtos essenciais detidos em oligopólio (com poucas empresas a comercializarem o mesmo), como é o caso dos combustíveis, electricidade, comunicações e outros.


MAS FALEMOS DA BAIXA…


Incidindo mais propriamente na Baixa de Coimbra, que é o que nos interessa de sobremaneira, com uma oferta de habitação muito degradada e insalubre por força de um congelamento de rendas de décadas de más políticas governamentais e com habitantes muito envelhecidos, o parque habitacional não se renovando continuou em declínio. Já se sabe que, como na Natureza, para haver harmonia social é preciso haver um ecossistema a funcionar um pleno.
Em verdade e consequência, porque estamos todos encadeados, num processo incessante de pescadinha de rabo-na-boca, as lojas foram encerrando por falta de moradores-consumidores e à medida que foram fechando, levando atrás de si milhares de empregados, fomos assistindo devagarinho ao empobrecimento da maioria e ao desaparecimento paulatino mas certo de todos. Naturalmente que, causado por esta desertificação comercial e habitacional, aumentou o consumo de droga e o sentimento de insegurança nos seus frequentadores.
É certo que a classificação da UNESCO, em 2013, catalogando Coimbra Alta e Sofia como Património Mundial da Humanidade, embora distorcido no seu objecto por falta de planeamento camarário, foi um alento importante no sector turístico que, tal como o todo nacional, por arrastamento envolveu o aumento de transacções no imobiliário e fez crescer assustadoramente o número de hotéis na cidade, o alojamento local e também os cafés e restaurantes na Baixa – este fenómeno, apesar de ser notório o excesso de oferta, continua em velocidade de cruzeiro.
Mas como nem tudo são rosas, esta invasão de turistas trouxe consigo uma inflação desenfreada, sobretudo, nas rendas comerciais. Valores entre 3000 euros e 5000 euros passam a ser normais numa cidade de serviços, sem caudal industrial onde o emprego escasseia e a perder, desde há vários anos, milhares de habitantes na sua população. A cidade fica sem identidade e as ruas ficam vazias de estabelecimentos que, durante muitas décadas, foram parte integrante na sua alma, no colorido e na sua animação.
Resultado: já muito fragilizado pelo que vinha de trás, o comércio de rua está completamente vulnerável, exposto e sem defesas para qualquer ataque, e sem forças para respirar. Somente falando de 2013 para cá, já teriam encerrado cerca de duas centenas de pontos de venda, entre eles muitas casas centenárias. A média actual de vivência de um estabelecimento comercial é de um ano.
A questão que se coloca é: estando o fluxo turístico a diminuir, o que vai acontecer à Zona Histórica se o gráfico continuar a inclinar-se? Vale a pena pensar nisto, enquanto é tempo?


E TAMBÉM DOS POLÍTICOS DE MÁ MEMÓRIA


No período de 1993 a 2001, presidindo à Câmara Municipal Manuel Machado, e entre 2001 e 2013, com Carlos Encarnação e Barbosa de Melo, e entre 2013 e 2019, liderando novamente Manuel Machado, a cidade dos estudantes não teve governantes que olhassem para o futuro da Baixa. Quaisquer destes, limitaram-se a marear à bolina, navegando sem riscos perto da costa, e cada um deles – com maior agravo para Machado – quase em confisco, a tentarem esmifrar o mais que podiam os mercadores. Estes políticos, que não deixam história, olharam sempre os comerciantes como fonte de receita inesgotável e não como agentes de transformação necessários e importantíssimos neste lugar histórico.
No caso presente de Manuel Machado, tratando os operadores da Baixa como o burro espanhol, sempre a colocar-lhe mais carga no lombo, numa altura em que o turismo já apresentava sinais de saturação e implícita inclinação de queda, em Janeiro de 2016, de uma assentada aumentou desmesuradamente a ocupação de espaço público. Até aqui gratuito, passou a cobrar 2 euros por metro quadrado de apropriação de esplanadas. Bem como cavaletes indicativos de ementas e outras informações de cadastro comercial, que até aí tinham um custo de 10 euros por ano, passou a custar 145 euros.
A ocupação de vitrines nas paredes dos comércios, toldos, reclames e bancas junto das frontarias seguiram o mesmo índice de encargo. Basta atentar-se nas fachadas dos tão pitorescos comércios para se verificar o desadornado da maioria deles. Para se evitar mais um custo fixo, a solução foi desarmar para não pagar. O que sobrou nos que resistem à investida, nos dias que decorrem, constata-se uma perseguição implacável a todos os que persistirem na vontade de manterem uma zona emblemática, um postal turístico peculiar e sui generis. Mesmo sendo agnóstico, sem Deus e todos os Santos a ajudarem, Machado, antes de deixar o cadeirão do poder, por implícita promessa, parece jurar que vai rebentar com todos os vendedores com loja física. Há pequenas excepções, mas poucas.
Num aparente ódio de estimação, até ao último cêntimo, o político de que escrevo, e há-de ficar na história conhecido por “O Exterminador Implacável”, só descansa quando todos trancarem portas por insolvência. Até porque, compreende-se, alguém vai ter de pagar as verbas atribuídas a tudo o que é agremiação no concelho de Coimbra e outros, como a dádiva de 150 mil euros para Moçambique.


COMERCIANTES PERDIDOS


Com uma classe comercial, órfã de pai e mãe, desmotivada e abandonada à sua sorte, os mercadores, perdidos e sem orientação, não sabem o que fazer à vida. Contrariamente ao que seria suposto mas nem admira, ninguém contesta uma decisão camarária, poucos lêem um regulamento que orienta as regras comerciais. Entre o passado e o presente há um notório conflito de gerações.
Depois de terem perdido a ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra, num processo que foi tudo menos claro, mas que ajudou a programar este presente sem futuro que se adivinha, sobra pouco. Em dois galhos secos, num lado, está a APBC, Agência de Promoção da Baixa de Coimbra, encostada e manietada pela edilidade por força de subsídios que lhe permitem sobreviver, e manter um protagonismo que dá jeito, não se ouve um clamor protestante contra a indignidade que se verifica aos nossos olhos. No outro galho seco, sem se saber o que pretende e a manobrar num certo anonimato, está a recém-formada AICEC, Associação de Indústria, Comércio e Empresas de Coimbra.
Por tudo o que foi escrito é preciso plasmar mais alguma coisa para explicar o temor reverencial manifestado em anonimato que grassa por aqui?


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1 comentário:

ZITA ALEXANDRE disse...

Boa tarde

Caro Sr. QUINTANS
Em resposta ao ultimo parágrafo do seu texto,venho responder como comerciante e como Presidente da AICEC (ASSOCIAÇÃO INDÚSTRIA COMÉRCIO E EMPRESAS DE COIMBRA).
Permita-me que lhe esclareça que a AICEC não está nem nunca esteve no anonimato,e que sabe bem o que quer para a nossa Cidade.
Se o SR.QUINTANS ou outro colega precisar do apoio da Associação a mesma está ao dispor de todos os comerciantes da zona de Coimbra.Os nossos contactos estão bem visíveis.
Sempre que precisar de algum esclarecimento não hesite em nos contactar, não se esconda atrás de um monitor..

Sempre ao seu dispor
A Presidente da AICEC
ZITA ALEXANDRE