BOM DIA, BAIXA! PASSASTE BEM?
Vou
andando, graças ao altíssimo. Obrigado pelo cumprimento caloroso. Como sabes, e
talvez pela ordem natural das coisas, já fui nova, fui robusta, fui
envelhecendo e hoje, apesar de uns “liftings” e umas transfusões de sangue novo
pontuais, confesso, sinto-me velha, meu amigo. As minhas veias, as ruas,
contrariamente ao colesterol dos idosos pelo entupimento, estão vazias de
movimento. Diriam os mais experientes que nelas corre sangue fraco, como quem
diz, com pouco poder de compra para desespero de quem nelas se instalou, os
comerciantes, na tentativa de ganharem a vida e, com o seu legítimo egoísmo,
contribuirem para me manter viva e com força para as curvas. Mas queixam-se muito
este ano. Muito mais do que em anos anteriores. A tensão entre eles é indescritível. Sei que têm razão por que me
apercebo do que se está a passar. A pouco mais de dez dias do Natal a
desertificação de compradores assentou arraiais. E não é por falta de oferta,
acredita. Talvez pelo desemprego crescente, há cada vez mais lojas a abrir. É
rara a semana que em substituição de um que fecha outro espaço comercial não
veja a Lua. O problema é que, da mesma forma que abrem, encerram à velocidade
da luz. Posso contar-te, meu amigo, aqui na Rua Eduardo Coelho, uma minha artéria
conhecida, há cerca de dois meses abriu um moderno estabelecimento e já
encerrou. Era um casal de jovens radicalizados na Suíça -um deles de
ascendência portuguesa-, com trabalho certo no país helvético. Sem falarem com
quem quer que fosse, como sombra que se impõe num recanto isolado, instalaram-se
e, da mesma forma, como varridos por Sol de inverno, desapareceram. Em especulação,
a brincadeira para estes aprendizes de empresários ter-lhes-à custado cerca de 10
mil euros.
Conto-te
ainda que as deslocalizações de comerciantes são mais que muitas. Por exemplo,
uns que estavam estabelecidos numa rua larga, em busca de um arrendamento
menor, vão para uma ruela estreita. Na hotelaria a mesma coisa. Quem abriu há
cerca de dois anos, porque não aguentava os custos, passou a outros –poderia
indicar nomes mas não fica bem. Desculpa, mas tens de entender que não sou como
certo tipo de mulheres, do leva e traz, do soalheiro. Não sei se estou a ser
clara, mas quero dizer que, sem que ninguém controle a oferta, anda tudo a ver
se safa nem que tenha de encravar o próximo. É assim uma espécie de lei da
selva. O que é preciso é sobreviver. Estás a acompanhar o meu raciocínio?
Por outro lado, estão acontecer outros fenómenos mesmo nas minhas
bentas. As marcas franchisadas começam a implantar-se no meu seio. Como deves
calcular, meu caro, com rendas astronómicas e impossíveis de sustentar. Então,
como era de prever, a primeira leva –de jovens, sempre jovens-, depois de cerca
de um ano, saem financeiramente destroçados. Vem a segunda encomenda, também
gente nova, e pegam na marca. Agora vê a lógica da coisa: com rendas ainda mais
elevadas que a primeira. Estás a ver bem, meu amigo? Isto é, se com uma renda
inferior não deu para os primeiros, como pode dar para os segundos? Quero
dizer, portanto, que estas rendas selvagens estão a provocar um extermínio na
minha zona corporal que até me provoca borbulhas de alergia. Por quem gere a
cidade, era preciso fazer alguma coisa para negociar aqui um contrato social
entre os proprietários com lojas e habitações vazias para, em nome da
cidadania, baixarem as rendas para que os investimentos se tornem profícuos. É
óbvio que o anterior governo foi o maior especulador ao aumentar a incidência
de tributação, passando de 15 para 25 por cento. Não vou pedir que este novo
executivo volte atrás –será difícil. O que se espera dele é que, pelo menos,
cumpra o seu programa eleitoral e, tal como em outros países europeus, seja
instituído o seguro de renda. Pode ser que, pela garantia, sejam colocados no
mercado mais espaços e, na subsequência, os valores baixem.
Não é
que pretenda dizer-te que eu (a Baixa) seja terra de fenómenos como o Entroncamento, mas eles estão aí. É certo que em “dejà-vù”. Melhor dizendo é um
filme que já vimos há vinte anos. Lembras-te, meu aficionado leitor, quando em
1994, com a adesão de Portugal à Organização Mundial de Comércio, abriram as
primeiras lojas de “300” na Rua das Padeiras? Talvez não te recordes mas, desde
guarda-chuvas a ferramentas, vendiam tudo. Qual foi a consequência a nível
nacional? Destruíram centenas, senão milhares, de fábricas e, por arrasto, as
lojas de artigos decorativos foram, paulatinamente, na mesma direcção. Então
agora o que está perante os nossos olhos? Lojas de artigos chineses tudo a um
euro. Como já não há fábricas para encerrar, vai o que resta de lojas de
ferragens, vendas de artigos eléctricos e outros afins. Tudo na paz e protecção
de Nossa Senhora da Globalização.
Como
sabes também, dentro de alguns dias, vai abrir no meu ventre uma nova média superfície
comercial. Tudo numa nice! Quantas são? Quantas São? Venham mais, mais e mais!
Apesar de ter a pele mirrada aguento bem! Já estou habituada a ser fodida! –desculpa!
Deveria ter sido mais polida, mas, que queres?, não encontrei nenhum sinónimo
apropriado.
Claro que tenho de te dizer meu amigo, o processo está ao contrário,
dever-se-ia criar algo que atraísse mais público. Ora, o que se está a fazer é
criar mais e mais negócios sem ter a
certeza da sua sustentabilidade. Vi que enrugaste a fronte. Devo supor que
concordas que a lei da atração funciona como pescadinha de rabo na boca. Para haver
desejo a motivação terá de ser desencadeada. Concordo. Mas, quanto a mim, terá
de haver uma causa-efeito planeada. E está a ser organizada com pés e cabeça
por quem manda? Não creio. Não sei se fui suficientemente clara.
E agora,
para não ser mais chata que as velhas carpideiras, como diria o Sousa Veloso,
que Deus tem, “despeço-me com amizade”.
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