Começo
com uma ressalva: já sou velho. Talvez mais velho do que pareço.
Embora faça tudo para parecer modernaço, jovial e mais novo, sei
que, de facto, sou velho. Não sou velho em função da idade -estou
à beira dos sessenta-, mas sim pela intensidade como, na forma, vivi
todos estes anos. Faço parte de uma geração de portugueses que
começou a desbravar a vida muito cedo. Pela conjuntura do tempo, fui
criança quando ainda deveria ser infante, fui homem quando ainda
deveria ser adolescente, fui responsável, casando e sendo pai de
filhos, quando ainda deveria andar a marear o caneco e a
beijar as cachopas. Talvez este adiantado calcorrear nas fases
de crescimento, estando sempre à frente, explique porque,
intelectualmente, sou agora mais velho do que pareço. E “ser
velho” é o quê? Ser derrotista, pessimista, um negativista
militante? É isto, o mesmo que Camões simbolizava no “Velho do
Restelo”, dos Lusíadas? Não senhor! Nada disso! Ser velho é,
pelo caminho percorrido, pela experiência empírica, ser avisado,
prudente, desconfiado em quantidade que baste. Não um irritante
descrente que não confia em nada nem ninguém. Não é isso. É,
perante uma boa-nova, uma notícia, pesando os prós e contras,
conseguir antever imediatamente o reverso da medida. Ser velho
é, pelas pedras pisadas e pelas mazelas marcadas na alma, passar a
ser um optimista contido, um realista eloquente. No fundo, é ser um
céptico espiritual, dividido entre o que parece ser e o que será no
futuro, que através da sensibilidade adquirida tenta precaver-se,
defendendo-se, e não escorregar facilmente na casca da banana.
Em resumo, ser velho não significa que se duvida para
existir, mas duvida-se para persistir, resistir, fazendo da incerteza
um campo vasto de análise complexa, um filtro que em processo de
eliminação conduz à verdade absoluta -de que falava Decarte na
“Dúvida Metódica”. Para que, em caso de aparência
desfeita, na hora da descoberta da mentira o impacto seja menor e
cause o menor dano.
Iniciei
este texto com este longo prólogo, em boa verdade, para me
justificar. Trabalho há cerca de meio século -dezasseis como
empregado e 34 por conta própria-, e escrevo há décadas sobre o
comércio, enquanto actividade profissional, e também sobre o que se
passa à minha volta, na Baixa da cidade. É óbvio que estas duas
premissas não me dão ares de um especialista, nem coisa que o
valha. Talvez no limite faça de mim um especulador, um observador,
isto sim.
Volta e meia sou
confrontado com pedidos de opinião sobre o que penso sobre a possibilidade de se abrir um determinado negócio. Normalmente são pessoas que, vindas de
outras profissões, como professor, advogado e outras áreas
profissionais, não têm qualquer experiência comercial. Ou porque
se aposentaram, ou porque fizeram um bom negócio predial e querem
investir o correspondente -já que os depósitos bancários não têm
rentabilidade. Há uma frase comum a todos: “o meu sonho foi
sempre ter uma lojinha!”
Fico sempre embasbacado
na resposta. Ou porque sinto a dificuldade de lhes refrear o ânimo, vindo de alguém que está profundamente cego e não mede as consequências,
ou porque, se os desmotivar, sejam levados a pensar que os quero
arredar do seu propósito. Sinto imensa contrariedade em
transmitir-lhe que, nos nossos dias, abrir um negócio pode ser o
pior passo na vida de qualquer um. O sonho pode facilmente
transformar-se num pesadelo infernal. Já assisti a vários desastres
nos últimos anos aqui na Baixa, sobretudo jovens -estes atiram-se de
cabeça e nunca pedem opinião. Já escrevi sobre a “obrigação”
prévia de qualquer um candidato que pretenda investir consultar, por
exemplo, o Gabinete de Apoio ao Investidor, da Câmara Municipal de
Coimbra.
O COMÉRCIO E O MITO
Até
ao virar do milénio, 1999/2000, tinha-se ideia que, sem grandes
conhecimentos técnicos, qualquer pessoa que quisesse enriquecer
facilmente só precisava abrir um espaço comercial. Passou-se o
mesmo na construção civil, mas aqui, neste metier, já
obrigava a outros saberes mínimos -e com a derrocada do crédito
barato este mito desapareceu. Hoje, comummente, aceita-se que não é
uma boa decisão construir casas. Reconstruir, se o Governo levar a
medida anunciada em frente, já poderá ser.
Como a indústria está
em coma, a construção civil está em banho-maria, a hotelaria
passou a ser sazonal, o comércio, exceptuando as grandes
superfícies, sofre de raquitismo, os serviços, em prestação, são
muito mal pagos, a agricultura é a falência precoce que se sabe,
praticamente, poucos sectores continuam a gerar emprego. Então, numa
espécie de Nossa Senhora dos Aflitos que acolhe todas as
rogações, o que sobra é o silêncio da indecisão. De pouco mais,
o que resta é criar a sua própria ocupação no comércio -os
governos, anteriores e actual, dão uma mãozinha criando fortes
incentivos no investimento jovem -com um único objectivo: baixar a
taxa de desemprego a qualquer custo, nem que seja pela desgraça
alheia. Os resultados, mesmo na destruição como meta, são sempre
positivos para a máquina fiscal. Enquanto durar é sempre a facturar
para o fisco. E quando acabar em insolvência o Estado, no caso a
Segurança Social, não responde com subsídio de sobrevivência para
quem perdeu tudo.
Repare-se que há muitos
anos deixou de se designar “comerciante”, “industrial”.
Pomposamente, passou a ser “empresário”. Esta mudança de
estatuto não foi ao acaso. A máquina da propaganda dos governos
sabem que tocar na vaidade humana é chegar-lhes à alma.
Ter uma empresa, um
negócio, passou a ser o sonho existencial de qualquer um. Por isto
mesmo, o mito do comércio continua e está para durar.
MAS TANTAS FALÊNCIAS?
PORQUÊ?
Numa
espécie de bê-à-bá de merceeiro, sabe-se que quando a
oferta suplanta a procura o preço dos produtos desce,
desce, até à “red line”, até à impossibilidade de
poder manter o bem no mercado assegurando os custos de produção.
Quando isto acontece, a solução é deslocalizar as empresas para
outro país de mão-de-obra e obrigações, fiscais e regalias
sociais, baratas e quase inexistentes.
No comércio passa-se o
mesmo fenómeno. Como a procura continua a cair desde 2000, a solução
é deixar cair os preços até à hecatombe final. Os que mais
conseguirem adiar o tombo, naturalmente, vão adiando a queda -não é
por acaso que paulatinamente assistimos a dois episódios marcantes
na economia.
O
primeiro, são as constantes promoções
e baixa de preços nos shopping's. E porquê? Porque, para oferecerem
o mais baixo, praticam uma oferta predadora internacional -correndo o
mundo em busca do menor custo de produção- e destruidora da
economia local. Claro que o que se publicita é que, contrariamente,
incentivam a indústria nacional. A mais infame das mentiras
condescendentes. Em abono da verdade, saliento que nem condeno por aí
além. Se a lei permite, as grandes áreas limitam-se a usufruir da
prerrogativa -se eu estivesse no lugar de um destes grandes
administradores faria igual. O problema está nas directivas
comunitárias, europeias, que, sabem bem, em nome de uma
pseudo-transparência na concorrência entre estados-membros, estão
a defender os países com maior possibilidade de produção
intensiva, com baixos custos de produção através de subsídios
estatais concedidos, e índice de exportação. E também para,
através da Globalização, serem defendidos os interesses da
Organização Mundial do Comércio.
O
segundo episódio, na última década e meia assistimos, impávidos e
serenos, à desbaratada Lei dos Saldos e Promoções, promulgadas
pelos sucessivos governos nacionais. Não é preciso ser economista
para ver que havendo constantemente promoções de produtos, sejam
alimentares, sejam de vestuário, calçado, ou electrodomésticos,
está-se, por um lado, a desviar os consumidores intencionalmente,
servindo a lei como instrumento, por outro, está-se a concorrer para
destruir os mais pequenos, como é evidente, os mais vulneráveis e
débeis.
MAS A PEQUENA LOJA NÃO
TÊM CUSTOS MENORES?
Repetindo,
o mito do comércio como sendo Midas, em que tudo se transformava em
ouro, persiste e gerando outros sub-mitos. Um deles é que a pequena
loja de bairro tem custos associados de manutenção menores que as
grandes áreas. Puro engano. Um pequeno espaço comercial tem custos
de preservação brutais e incomportáveis para o estado actual em
que se encontra a macro-economia. Por uma questão de não maçar,
não vou nomeá-los. O que posso escrever é que um pequeno negócio
é um micro-cosmo de ventos contrários. Enquanto anualmente sobem os
custos, desde impostos e taxas, electricidade, água, seguros,
alarmes, comunicações, rendas, os proveitos vão diminuindo pela
continuada quebra da procura. Para piorar a questão, os obrigatórios
serviços prestados às empresas, enquanto custos necessários, estão
constantemente a deteriorar-se. Tudo passou a ser feito através de
computador. Em caso de anomalia, as respostas são feitas por
gravação.
Hoje,
um lojista está transformado num actor mal pago num cenário de um teatro
trágico. Concorre para a animação da cidade mas não é
reconhecido como tal. Pelo contrário, pelo poder político
-partidário, autárquico e governamental-, é desprezado exactamente
pelas ideias feitas, pelo mito, de que sendo comerciante, logo é um
aproveitador sem escrúpulos, é um grande capitalista.
Os partidos identificados com a Direita, disfarçando mas apregoando
a livre iniciativa privada e desintervenção do Estado na Economia,
em nome de uma imparcialidade que não se sabe onde começa nem
acaba, foram até agora os maiores inimigos dos criadores de riqueza.
Os partidos ditos de Esquerda, sem disfarce, pelo histórico
recalcamento marxista, já nem procuram a simulação. De uns e
outros não se pode esperar nada. Ou, se calhar, que a reforma chegue
depressa para mandar tudo às urtigas- para não dizer um palavrão.
Não
é de admirar que no conjunto, entre jovens e aposentados sonhadores,
uns e outros, continuem a sonhar e, sobretudo, a apontar culpas aos
comerciantes estabelecidos pelo falhanço dos centros históricos,
enquanto centros de comércio.
Venham para cá,
invistam, para saber como o comércio morde!
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