Ontem foi o último dia de um dos mais emblemáticos
estabelecimentos da Baixa da cidade. Ontem, 31 de Agosto, encerrou as modas
Xangai na Rua do Corvo. Fundada em 1981, 34 anos depois, em silêncio e sem pompa e sem
glória, fecha-se um capítulo de várias histórias de vidas que ali desempenharam
a sua função. Na montra, vestida num manequim, uma blusa em forma e cores da
bandeira nacional por cinco euros parece mostrar a que ponto chegou o nosso
orgulho nacional. Na parede, em poster gigante, uma estrada assinalada e desenhada por
entre montanhas a terminar com "saldos 60 por cento" parece premonitório e a indicar o
destino do comércio tradicional.
Escrever sobre este final, pode parecer fácil
mas não é de todo. Mas alguém terá de o fazer. E, neste caso, sem incumbência
de quem quer que seja, cabe-me a mim. Como ontem, que fui dar uma palavra de
solidariedade ao senhor Inácio –o velho comerciante que ali deixa tudo
enterrado, desde os sonhos à possibilidade de ter um merecido resto de vida-
mas também tentar saber alguma coisa para escrever hoje, senti-me uma espécie
de agente funerário. Mas, repito, por um lado, para que a memória não se apague,
por outro, para mostrar ipsis verbis
que a economia não está a crescer conforme apregoam os políticos que nos (des)governam. Alguém terá de escrever sobre as muitas lojas comerciais que, mesmo num
interesse legítimo de egoísmo, durante décadas deram o seu melhor para a cidade
que as viu nascer. Do ponto de vista moral –se é que existe moral social para
um comerciante que se apaga no turbilhão do insucesso- é tremendamente imerecido
um profissional que deu tudo, incluindo a própria vida familiar, sair assim,
cabisbaixo, sem ânimo para um adeus. A sociedade é selvaticamente injusta para
quem tropeça e cai. Só bate palmas a quem, de qualquer jeito e mesmo recorrendo
a todos os meios, tem sucesso.
Ontem eu tive à minha frente um
quase septuagenário a fazer um enorme esforço para não chorar. Ontem tive à
minha frente uma das suas funcionárias, com as lágrimas a correr pelo seu rosto
de pouco mais de trinta anos, a rogar: “senhor
Luís, você anda por aí, se souber de alguma coisa, por favor ajude-me!”. Quando
vemos este cenário como ficamos?
Quem viu esta Baixa há uma dezena de anos e a
vê agora, com lojas fechadas que foram a sua alma, não pode deixar de sentir um aperto, uma
dor lancinante no peito e dar razão à letra da canção da denominada Orquestra
de Músicos de Rua de Coimbra, "Hino à Cidade Perdida": “o tempo
passou e tudo mudou, a minha rua que era luz, agora é triste, tem uma cruz p’ra
lembrar que pereceu; já nem um pregão, um gato a miar, só o silêncio modorrão
invadiu seu coração e de quem teima em ficar.”
MAIS UMA RUA QUE PERDE
A SUA IDENTIDADE
A Rua do Corvo, com as suas muitas lojas de
tecidos pendurados nas frontarias dos estabelecimentos, foi até há poucos anos
uma das artérias mais castiças da zona histórica. Hoje, já com alguns pontos de
venda encerrados ao longo da via, já não tem uma única para amostra. Se não
houver cuidado –e o que se pode fazer perante a apatia do poder político local
e governamental?- a Rua do Corvo segue o mesmo destino da Rua Adelino Veiga. É
preciso salientar que as modas Xangai são (foram até ontem) constituídas por
duas grandes lojas e que, para além disso, as suas frentes dão também para a
Rua da Louça –o que quer dizer que vai afectar uma parte substancial desta zona
comercial.
AS LOJAS ANTIGAS A
TERMO CERTO
Desde há três anos a esta parte verifica-se que,
como nevoeiro em manhã cinzenta de Agosto, todas as lojas antigas estão a desaparecer
sem que haja alguém a chamar a atenção para este facto anómalo. Não se deveria sentar o comércio no divã psicanalítico? Tanto quanto
julgo saber, até ao fim do corrente ano, mais umas tantas estão alinhadas para
serem crucificadas nesta época política sem glória, de ingratidão e sem
respeito pela história. São os tempos que vivemos?
E NINGUÉM SE IMPORTA
COM APOIO PSICOLÓGICO?
Lendo as linhas anteriores, até pode parecer
que apenas estou preocupado com a Baixa e esqueci o drama do proprietário e o
dos seus funcionários. Nada disso! Aproveito para dizer que é de uma lacuna
inolvidável ninguém se importar como ficam estas pessoas. Quer no campo
financeiro, quer no aconselhamento jurídico, quer no psicológico. No mínimo –se
calhar estou a ser utópico- deveriam ser acompanhadas psicologicamente por
especialistas. Mas como estamos num país miserável –onde sempre se
viu o comerciante como explorador e que mais depressa se ajuda um cão- e com um
governo destruidor de toda a auto-estima de quem tanto deu e fez pelo país, nem
é de admirar.
Em nome de todos os comerciantes que ainda vão
resistindo, em nome da Baixa da cidade de Coimbra, se posso escrever assim, para
o senhor Inácio e funcionários uma grandessíssima salva de palmas! Muito
obrigado por tudo quanto deu. E, infelizmente, por tudo quando perdeu!
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