1.º
ACTO
Este
último Sábado, 21 de Abril, ficará para sempre marcado nas gentes
de Chelo e arrabaldes desta aldeia pitoresca do concelho de Penacova
como uma data gravada para os vindouros.
O
entardecer do penúltimo dia da semana decorria pachorrento. O Sol,
como a associar-se e a adivinhar festança, como cabelos louros
esparramados, estendia os seus raios dourados sobre os montes e vales
em redor. No pequeno largo onde foi construída a associação cultural de Chelo há cerca de um século era perceptível uma
invulgar empolgação. Aqui e ali, em conversa animada, pequenos
magotes de pessoas, apessoadas com fato domingueiro, pareciam esperar
qualquer coisa ou alguém. Outros homens e mulheres, vestidos a rigor
com vestimentas de antanho e a retratarem o passado, membros do
rancho folclórico, atropelavam-se em afazeres de ida e vinda para o
interior do clube da terra.
Dos
fundos de uma viela surgiu um homem vacilante, de aspecto doentio.
Caminhando aos tropeções, amparado num andarilho, encaminhou-se
para o meio da praça. Apesar da fragilidade notória, a imagem do
surgente parecia irradiar uma força anímica inexplicável. Com um
dos olhos toldado pela doença, a outra vista parecia brilhar de
intensidade que o transformava em insurgente.
De
repente, pela sua aparição, os grupos desfizeram-se e todos
correram para dar um abraço ao recém-chegado. Com os olhos
humedecidos pela emoção, o consagrado, em meias palavras
entrecortadas num tarmudear, ia agradecendo: “muito...
obrigado! Muito... obrigado! Eu... não estava à espera... de uma
coisa destas! E logo nos meus anos! Foi uma completa surpresa!”
O
que estava acontecer no largo da União Popular e Cultural de Chelo
era uma homenagem a Manuel Ribeiro, um homem que já foi menino
pobre, marçano de comércio, comerciante rico na Baixa de Coimbra,
que teve o mundo na mão, e agora, como tantos milhares de
portugueses, é simplesmente um cidadão que vive da sua pequena
pensão de velhice. Ribeiro, amparado e abraçado, talvez sem o
saber, por um lado, era ali o símbolo do apogeu e declínio da
humanidade. Naquela imagem empobrecida, no melhor e no pior, estava um pouco de todos nós,
a história de um comerciante que percorreu o mundo de lés-a-lés e
agora, pela contingência e tombos que a vida prega, arrastava-se com
dificuldade. Por outro, certamente sem disso se dar conta, o povo
anónimo que ali prestava tributo a um homem agora despojado de bens,
pelo seu exemplo de reconhecimento, também fazia história. Não é
todos os dias que alguém se ajoelha em sinal de respeito perante um
comerciante despossuído.
Mas,
afinal, o que fez de relevante o agraciado? Quem respondeu foi Manuel
Ralha, morador na povoação e membro do rancho típico do lugar:
“Manuel Ribeiro,
enquanto podia, deu muito a esta terra e a muitas outras em redor.
Foi presidente do União Popular e Cultural de Chelo. Bastava pedir e
ele trazia em quantidade o que fosse preciso. Desde meias, bolas,
equipamentos, ele oferecia tudo para os atletas! Dava tudo sem pedir
nada em troca. Mesmo quando não era dirigente do clube foi sempre
uma alma nobre. Ajudou muito o concelho de Penacova, incluindo outras
instituições. Fez muito bem a toda a zona. É o mínimo que
poderíamos fazer pelo “Manel”! Daí esta legítima e mais que
merecida homenagem!”
Durante
cerca de três décadas, o Manuel Ribeiro, com duas grandes casas
comerciais em Coimbra, o Eldorado e o Infinito, pelo seu arrojo em
quebrar um cinzentismo de modorra, como timoneiro de um navio ao
serviço da moda, deu cartas a todos os mercadores da cidade.
E CAÍU O
CREPÚSCULO
Lentamente
a noite foi estendendo o seu manto sobre os presentes, que à medida
que o tempo passava ia engrossando o número e já ultrapassava a
centena. No pequeno café da colectividade, Ribeiro não tinha mãos
a medir para corresponder a tantos beijos e abraços.
No
papel de jornalista de ocasião, interrogo: o que é isto, “Manel”?
“Isto resulta de um
trabalho de muitos anos. Foi de forma extemporânea. É
agradecimento! Cava fundo, vem ao de cimo. É o reconhecimento da
sociedade! Sempre gostei de preparar os homens para o dia de amanhã.
É preciso saber perder para conseguir ganhar! Nesta altura da minha
vida, isto suplanta as minhas expectativas. Está a aparecer aqui um
naipe de personagens que não estava à espera. Apesar do tempo, a
amizade não foi esquecida. Estou muito, muito agradecido. Muito
obrigado a todos!”
Cerca
das 21h00, o engenheiro Ralha, presidente do União Popular e
Cultural de Chelo, tocou a reunir à porta da colectividade. Veio a
Filarmónica Lorvanense e executou várias peças em louvor do
Ribeiro. Tocou também os parabéns pelos 79 anos de vida do
conterrâneo que se celebrava neste mesmo dia. Como grossos pingos de
chuva a atravessar a cercania, sem conseguir conter a emoção, as
lágrimas caíam pelo rosto cansado e doente do “Manel” do
Infinito, como é também carinhosamente reconhecido em Coimbra.
Para
quem presenciou, pela simplicidade, foi um espectáculo
impressionante. Foi lindo! lindo, lindo de ver!
(Fim
do primeiro acto -artigo em continuação)
TEXTO RELACCIONADO
"O homem que já foi Infinito, Eldorado e agora é um Ribeiro" (2)
"O homem que já foi Infinito, Eldorado e agora é um Ribeiro" (3)
TEXTO RELACCIONADO
"O homem que já foi Infinito, Eldorado e agora é um Ribeiro" (2)
"O homem que já foi Infinito, Eldorado e agora é um Ribeiro" (3)
1 comentário:
...tartamudear ...
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