(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Escrevi
esta crónica em Abril de 2013.
Pela
sua actualidade, mesmo correndo
o
risco de maçar, ouso trazê-la novamente
à
leitura de quem faz o favor de ler o que
escrevo.
Estou certo que muitos irão
identificar-se
com esta história
O
homem que tenho à minha frente chora desalmadamente. Por
arrastamento choro também. Tem 62 anos e desde miúdo que aprendeu a
tratar o comércio por tu. Filho de pais muito pobres, nos arredores
da cidade, o trabalho foi o único meio de angariar rendimento e
sonhar com uma vida melhor. Com 12 anos, por volta de 1960, começou
a labutar numa mercearia ali para os lados de Santa Clara. Entre
segunda e sábado, percorria os cerca de uma dúzia de quilómetros a
pé, ida e volta, entre a aldeia e a cidade.
Naquele
tempo só havia dois feriados no ano: dia de Páscoa e de Natal. Na
véspera deste dia do nascimento de Jesus, nas vendas de géneros
alimentícios, atendiam os fregueses até altas horas, quase até à
missa do galo. Um dia, contou-me, num Natal do início do mesmo ano
de 1960, por volta das 21h30, estava a arrumar as garrafas de gás
para ir passar a consoada a casa, o telefone retiniu na loja do
tendeiro. Era um cliente da Rua do Depósito, no planalto de Santa
Clara, a pedir um litro de óleo para confeccionar as filhoses. Numa
altura em que o cliente era o rei da massa e tinha sempre razão, o
velho merceeiro e patrão, em face do pedido, logo se prontificou na
sua satisfação e encarregou o marçano de imediatamente ir à
prateleira retirar um litro de óleo e marchar em grande velocidade
em direcção ao planalto. O petiz, cansado e farto de calcar e
calcorrear as pedras da calçada, maldizendo o freguês, as filhoses
e a sina que lhe calhou em sorte de nascer pobre e ter de ser o burro
de carga de todas as solicitações e saco de todas as marradas, foi
à estante, por cima da tulha do açúcar, sem olhar para os
rótulos, retirou uma garrafa que colocou numa mochila para o efeito,
e partiu desalentado em busca do cumprimento da ordem dada. Meia hora
depois estava a entregar a encomenda à dona da casa, lá na parte
alta da cidade, e, como boomerang predestinado ao regresso,
fez novamente o caminho inverso na orientação da casa do bacalhau
ao quilo. Encontrou o velho merceeiro à porta, colérico e
completamente fora de si, com um cacete na mão e a gritar: “meu
filho de uma figa! Desgraçaste-me o negócio! Então levaste um
litro de petróleo?! A senhora queimou as mãos, meu desastrado!”
Dali,
da casa dos fiados, sempre a subir nos dias, como assalariado partiu
para outro negócio e outro e outro até ir para a tropa. Quando
deixou o serviço militar casou com a sua namorada de muitos anos.
Foram viver para uma casa muito velhinha, lá na aldeia. Mas, noite
após noite, o nosso homem antes de adormecer elaborava mil planos
para sair do patamar da pelintrice. Mas como? Interrogava-se em
solilóquio sem fim. A mulher era costureira e ganhava pouco, tão
pouco que mal dava para as linhas. Ele continuava a trabalhar numa
casa comercial na cidade e o ordenado, para além de ser quase
invisível, parecia líquido porque se esvaía por entre os dedos.
Mas a fé em dar o salto, assente numa vontade férrea, minava o seu
dia e a penumbra. Os seus pensamentos, como andorinha a cruzar o céu
primaveril, eram apenas preenchidos com uma mensagem: “eu sou
capaz! Eu sou capaz! Vou vencer!”
Um
dia, por volta de 1980, soube de um pequeno quiosque numa entrada de
um prédio que estava em trespasse. Foi falar com o dono e acertaram
o preço. Porém havia um problema: faltava o dinheiro necessário.
Foi falar com um amigo e, dividindo o investimento pelos dois, depois
de correrem Seca e Meca a arranjarem financiadores, sem
rede, como kamikase suicida a atirar-se para a frente em defesa da
causa nobre, lá abriram o comércio. Durante anos e anos foi comprar
e vender até altas horas da noite, sem tempo para deprimir e muito
menos para dormir. Como recompensa de Deus, o negócio floria como
rosa em terra fecunda.
Vieram
os filhos, crescendo sem pai, estudaram e chegou o dia em que foram
admitidos na Universidade. E o nosso sonhador desfez-se em lágrimas
de prantos sofridos. Estava a dar aos seus o que não lhe fora
oferecido pelos seus ancestrais. Sentia um contentamento
indescritível. Ali, naquela conquista escolar que tanto significado
tinha para si próprio, os seus herdeiros eram a extensão de si
mesmo. Constituíam a projecção e a realização de tantos sonhos
martelados em noites de lua cheia e de vazio quarto-minguante.
No
início da década de 1990 já era proprietário de três
estabelecimentos e detinha meia dúzia de funcionários ao seu
serviço. A venda de produtos caminhava de vento em popa. Adquiriu
o seu primeiro automóvel a estrear, a seguir uma vivenda num bairro
chique limítrofe da cidade. Em meados da mesma década comprou uma
casa na praia. Veio o virar do milénio e o futuro estava garantido,
pelo menos era assim apregoado pelos políticos da altura e pelo
crédito anunciado pelos bancos.
Veio
2001, e o abalo causado pelas torres gémeas, na América.
Aparentemente a economia continuava a rolar numa relativa
normalidade. Nessa altura surgiu um bom negócio, na possibilidade de
comprar uma outra vivenda com outras condições de bem-estar. O
banco emprestava com a possibilidade de esperar pela venda da
primeira. E o nosso homem comprou. Caiu o céu sobre a Europa e tudo
descambou em catadupa. A primeira casa não se vendeu, outras
complicações surgiram e as vendas decaíram a pique. E o
comerciante que, ao longo da vida se atirou sempre sem rede e sem
resguardo, num ápice estava cheio de dívidas.
Há
dias apresentou um pedido de falência. É único? Não! Na nossa
volta, há cerca de uma dúzia de profissionais que estão na
iminência de dar o mesmo passo. Para o comerciante que agora pediu a
insolvência –e para outros que lhe vão seguir- gostaria de deixar
um grande abraço, apertado e de sentimento. Que não se sinta
diminuído. Que não se deixe abater. Sei, porque conheço bem a sua
história. Sei que fez tudo o que podia para levar o seu navio a bom
porto. Não conseguiu. Mas não foi por falta de esforço e entrega à
causa comercial.
Uma
grande, grande, salva de palmas para este meu amigo!
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