segunda-feira, 23 de abril de 2018

O HOMEM QUE JÁ FOI INFINITO, ELDORADO E AGORA É UM RIBEIRO (1)




1.º ACTO
Este último Sábado, 21 de Abril, ficará para sempre marcado nas gentes de Chelo e arrabaldes desta aldeia pitoresca do concelho de Penacova como uma data gravada para os vindouros.
O entardecer do penúltimo dia da semana decorria pachorrento. O Sol, como a associar-se e a adivinhar festança, como cabelos louros esparramados, estendia os seus raios dourados sobre os montes e vales em redor. No pequeno largo onde foi construída a associação cultural de Chelo há cerca de um século era perceptível uma invulgar empolgação. Aqui e ali, em conversa animada, pequenos magotes de pessoas, apessoadas com fato domingueiro, pareciam esperar qualquer coisa ou alguém. Outros homens e mulheres, vestidos a rigor com vestimentas de antanho e a retratarem o passado, membros do rancho folclórico, atropelavam-se em afazeres de ida e vinda para o interior do clube da terra.
Dos fundos de uma viela surgiu um homem vacilante, de aspecto doentio. Caminhando aos tropeções, amparado num andarilho, encaminhou-se para o meio da praça. Apesar da fragilidade notória, a imagem do surgente parecia irradiar uma força anímica inexplicável. Com um dos olhos toldado pela doença, a outra vista parecia brilhar de intensidade que o transformava em insurgente.
De repente, pela sua aparição, os grupos desfizeram-se e todos correram para dar um abraço ao recém-chegado. Com os olhos humedecidos pela emoção, o consagrado, em meias palavras entrecortadas num tarmudear, ia agradecendo: “muito... obrigado! Muito... obrigado! Eu... não estava à espera... de uma coisa destas! E logo nos meus anos! Foi uma completa surpresa!
O que estava acontecer no largo da União Popular e Cultural de Chelo era uma homenagem a Manuel Ribeiro, um homem que já foi menino pobre, marçano de comércio, comerciante rico na Baixa de Coimbra, que teve o mundo na mão, e agora, como tantos milhares de portugueses, é simplesmente um cidadão que vive da sua pequena pensão de velhice. Ribeiro, amparado e abraçado, talvez sem o saber, por um lado, era ali o símbolo do apogeu e declínio da humanidade. Naquela imagem empobrecida, no melhor e no pior, estava um pouco de todos nós, a história de um comerciante que percorreu o mundo de lés-a-lés e agora, pela contingência e tombos que a vida prega, arrastava-se com dificuldade. Por outro, certamente sem disso se dar conta, o povo anónimo que ali prestava tributo a um homem agora despojado de bens, pelo seu exemplo de reconhecimento, também fazia história. Não é todos os dias que alguém se ajoelha em sinal de respeito perante um comerciante despossuído.
Mas, afinal, o que fez de relevante o agraciado? Quem respondeu foi Manuel Ralha, morador na povoação e membro do rancho típico do lugar: “Manuel Ribeiro, enquanto podia, deu muito a esta terra e a muitas outras em redor. Foi presidente do União Popular e Cultural de Chelo. Bastava pedir e ele trazia em quantidade o que fosse preciso. Desde meias, bolas, equipamentos, ele oferecia tudo para os atletas! Dava tudo sem pedir nada em troca. Mesmo quando não era dirigente do clube foi sempre uma alma nobre. Ajudou muito o concelho de Penacova, incluindo outras instituições. Fez muito bem a toda a zona. É o mínimo que poderíamos fazer pelo “Manel”! Daí esta legítima e mais que merecida homenagem!
Durante cerca de três décadas, o Manuel Ribeiro, com duas grandes casas comerciais em Coimbra, o Eldorado e o Infinito, pelo seu arrojo em quebrar um cinzentismo de modorra, como timoneiro de um navio ao serviço da moda, deu cartas a todos os mercadores da cidade.

E CAÍU O CREPÚSCULO

Lentamente a noite foi estendendo o seu manto sobre os presentes, que à medida que o tempo passava ia engrossando o número e já ultrapassava a centena. No pequeno café da colectividade, Ribeiro não tinha mãos a medir para corresponder a tantos beijos e abraços.
No papel de jornalista de ocasião, interrogo: o que é isto, “Manel”? “Isto resulta de um trabalho de muitos anos. Foi de forma extemporânea. É agradecimento! Cava fundo, vem ao de cimo. É o reconhecimento da sociedade! Sempre gostei de preparar os homens para o dia de amanhã. É preciso saber perder para conseguir ganhar! Nesta altura da minha vida, isto suplanta as minhas expectativas. Está a aparecer aqui um naipe de personagens que não estava à espera. Apesar do tempo, a amizade não foi esquecida. Estou muito, muito agradecido. Muito obrigado a todos!
Cerca das 21h00, o engenheiro Ralha, presidente do União Popular e Cultural de Chelo, tocou a reunir à porta da colectividade. Veio a Filarmónica Lorvanense e executou várias peças em louvor do Ribeiro. Tocou também os parabéns pelos 79 anos de vida do conterrâneo que se celebrava neste mesmo dia. Como grossos pingos de chuva a atravessar a cercania, sem conseguir conter a emoção, as lágrimas caíam pelo rosto cansado e doente do “Manel” do Infinito, como é também carinhosamente reconhecido em Coimbra.
Para quem presenciou, pela simplicidade, foi um espectáculo impressionante. Foi lindo! lindo, lindo de ver!