O Luís Cortês, como todos nós, divide-se entre
o verso e o reverso. Quero dizer que, como qualquer um, tem um lado público e
outro mais obscuro. Quem não for assim que lance a primeira pedra. Pelo lado
institucional, o Cortês é um músico de rua que nos faz companhia há várias décadas,
aqui na Baixa da cidade. Invisual e sem um braço, recorre ao talento que Deus
ou a Natureza lhe proporcionou: a música. Compõe –foi autor do hino de Pina
Prata, candidato à Câmara Municipal em 2009- e é instrumentista de excelência.
O órgão é a extensão do seu corpo amputado. É com este instrumento que angaria
o seu sustento e o da sua companheira. Recebe de reforma 335,00 euros e paga de
renda de casa 338,32 euros. A sua consorte, Fátima, desempregada de longa
duração, vai fazendo umas limpezas aqui e ali e aceita o que lhe querem dar
para que o pão e o vinho, graças ao altíssimo, nunca faltem à sua mesa, com certeza.
Durante vários anos esteve junto à Loja do Cidadão e nos últimos três vemo-lo
mais assiduamente a tocar junto à Igreja de Santa Cruz. Pelo lado misterioso, é
um cromo. De vez em quando embebeda-se e discute com a sua companheira, Fátima.
No Largo do Poço onde mora, por vezes, lá se ouve impropérios de bom vernáculo à
portuguesa. Mas não é por esse facto que não deixa de ser estimado por todos os
vizinhos. É assim uma espécie de exagero tacitamente aceite por todos e que só é
concedido a quem usufrui de estatuto especial na comunidade.
Hoje de manhã estava muito triste e cabisbaixo
no Largo do Poço. O que se passou, Luís? Interrogo. “Estou muito infeliz, senhor Luís! Como sabe, já há cerca de dois/três
anos que toco à frente da Igreja de Santa Cruz. Há volta de um mês, uma fiscal
da Câmara Municipal foi bater-me à porta de minha casa. Ordenou-me que retirasse
o órgão da Praça 8 de Maio e junto à igreja. Arguiu que não poderia lá tocar
sem licença. Disse também que se eu persistisse que me apreendia o instrumento
e que o levava para o seu gabinete. Eu fui à autarquia perguntar o que era
preciso fazer para tratar dos papéis mas não percebi nada do que queriam. Então
saí de lá e passei para o outro lado junto à loja “Coisas e Sabores” e continuei
a tocar. Hoje, durante a manhã, fui obrigado a levantar o poiso por ordem de dois
fiscais camarários. Mais uma vez invocaram que eu era obrigado a tirar licença
de ocupação de espaço público. Como faço agora, senhor Luís? Sem este
rendimento eu e a Fátima não podemos viver. É com estas moedas que
compro o pão, pago a luz e a água e tento viver com dignidade. Repare que eu
não pedi nenhuma habitação social à Câmara, está a perceber? Com o meu trabalho
na rua, eu sobrevivo às minhas custas. E agora? Como vou fazer? Eu sei que se
eu mudar para o Largo do Poço, junto ao salão do Jazz ao Centro, ou for para
junto à Loja do Cidadão a fiscalização não me incomoda, mas, sabe, não é a mesma
coisa. Na Praça 8 de Maio ganho muito mais. Há lá muita estrangeirada que gosta
do meu desempenho e contribui bem. Esta última semana foi fantástica. Andava
tão feliz e agora acontece-me isto, carago! Não hei-de morrer à fome mas,
assim, será muito complicado!”
MAS AFINAL COMO É QUE
É?
Juntos, fomos ao atendimento geral da Câmara
Municipal de Coimbra (CMC) saber o que é necessário para obter licenciamento.
Fomos atendidos por um funcionário simpático. Perante a nossa petição pareceu
não saber muito bem da tramitação. Primeiro perguntou a uma colega. A seguir
telefonou, levantou-se e foi saber o que era necessário. Regressou e amavelmente
informou que entre o Largo da Portagem e a Praça 8 de Maio, sem autorização, não
são permitidos músicos de rua. Se quiserem exercer o seu “metier” tem de solicitar uma licença pontual que, tal como outro
qualquer pedido e após análise, pode ser ou não concedida. E custa 10 euros por
dia. Qual o fundamento? Interroguei. "Porque estas ruas largas são zona protegida
no âmbito da recente classificação de Património Mundial pela Unesco", respondeu.
A LEGALIDADE, O BOM SENSO E A HUMANIDADE
Sem consultar o regulamento sobre este assunto,
tanto quanto julgo saber a postura assim obriga. Ou seja, para a CMC um pedido
de ocupação de via pública para um músico de rua tem o mesmo tratamento igual a
qualquer outro requerimento como, por exemplo, uma pequena banca de
distribuição de prospectos ou venda de produtos. O que quer dizer, em silogismo,
que se considera a prestação musical como actividade comercial. Era bom se
assim fosse, que o artista de rua fosse tratado como comerciante, digo eu agora
em especulação. O músico de rua não é considerado como um prestador de serviços
(que alegra as ruas da cidade) mas como um mendigo que estende a mão à caridade.
Por um lado, a sua insuficiência económica não é relevada, por outro, num
positivismo absurdo, é visto da mesma forma do indigente que estende a mão. Onde
fica o bom-senso, a razoabilidade, e a humanidade? Deixo estas questões de
análise para quem me lê.
COMO É EM LISBOA?
Depois de um telefonema para a Câmara
Municipal de Lisboa –que me remeteu para a Junta de Freguesia de Santa Maria
Maior, uma das que abarca maior área de ruas na Baixa Pombalina- fiquei a saber
que a animação de rua tem um tratamento especial. Por exemplo, enquanto para um
qualquer pedido de licenciamento para actividade comercial na via pública paga
logo à cabeça 397,00 euros e em caso de indeferimento esta verba não é
devolvida, no caso de animação é isento. Isto é, pede licenciamento e se for
concedido pode pagar 23 euros por trimestre –neste caso, imaginemos um
personagem-estátua. E, tanto quanto julguei perceber, não há zonas protegidas
para a animação pública. O movimento e a prestação destes artistas são muito
bem-vindas para tornar a cidade mais alegre e menos cinzenta.
DOIS CRITÉRIOS DIFERENCIADOS
Se para um músico de rua actuar nas ruas
largas da cidade de Coimbra tem de desembolsar uma autorização pontual que pode
custar 10 euros por dia, porque está numa zona protegida, vale a pena interrogar
quanto paga um vendedor de artesanato que, durante um dia, ocupa um espaço nestas mesmas artérias uma vez por mês. Um momento. Vou ligar para a Casa da Cultura, na Rua Pedro
Monteiro.
-Boa tarde, minha senhora, o que devo fazer
para me inscrever na Feira de Artesanato Urbano que decorre uma vez por mês nas
Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz?
-Deve estar colectado nas Finanças.
Deve remeter-nos várias fotografias do artesanato que produz para podermos
avaliar o seu trabalho e aguardar resposta.
-E quanto me custa a ocupação de espaço
público?
-Não custa nada. Não paga
nada!
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1 comentário:
O que li neste blogue hoje provoca uma revolta indescritível. Uma pessoa tenta sobreviver, vem a Câmara Municipal, materializada na fiscalização, e obriga esse cidadão a pagar uma taxa de 10 euros por dia. No absurdo interrogo: aparentemente, porque é a via central tão protegida pela autarquia? Vejo estudantinas a cantar, são abrangidos por esta taxa? Ou, como está de ver, estamos perante uma medida discriminatória pura e dura? Este homem, barbudo, aparentemente mal nutrido, mal vestido e às vezes até se embriaga, borra a pintura de um quadro que queremos todos transmitir a quem vem de fora? É isto que se passa, não é? Então vale mais assumir que a fiscalização camarária está a discriminar negativamente o munícipe Luís Cortês! Esta avenida central deve ser apenas para alguns e não para todos.
Outra questão, se me der na cabeça comprar uma aparelhagem com som potente e meter no máximo vêm fiscais da edilidade obrigar a pagar taxa? Se este músico de rua de que falo só tem sustento através da música, pois o resto do dinheiro vai para a renda, porque é que a Câmara em vez de ajudar aplica mais uma taxa? Na filosofia de redistribuição, para que servem os impostos que pagamos se não é para ajudar os mais pobres? Um músico de rua não deve ser tratado como um vulgar pedinte de mão estendida. No caso, este artista, dando alegria e cor às ruas, presta um serviço à comunidade. Ao ser tratado desta maneira está ser englobado como um vulgar mendigo que calcorreia ruelas e esquinas. Mas mesmo que fosse, será que a edilidade quer meter estas pessoas que pedem escondidas num beco qualquer de Coimbra? Afastá-las dos turistas para estes não verem a degradação humana que a cidade tem? Os caminheiros que nos visitam não são burros, basta olhar em redor. Olha se forem à Rua direita e entrarem em certos becos com o chão forrado com seringas…
A cidade já não tem muita animação, vão tirar os artistas de rua que restam? Querem transformar a urbe num cemitério? É isto?
Acho esta acção da Camara Municipal deplorável. Politica não é isto. Não elegemos quem lá está para afastar pessoas que tentam ganhar vida e dar outra cor à cidade.
Estou muito desiludido com este executivo. Ou melhor, estou indignado com este executivo que não sai das cadeiras para falar com moradores, comerciantes. E porque não ter uma conversa com pedintes? Estou simplesmente revoltado!
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