sexta-feira, 14 de agosto de 2015

HISTÓRIAS ENGATILHADAS



De tempos a tempos, sem regra temporal, visita-me. Já sei que, no mínimo vou estar duas horas a ouvir as suas histórias. As palavras saem-lhe da boca da mesma forma que a água escorre da fonte e provinda da montanha. Saem engatilhadas. Ainda está no meio de uma narração e, como manobra de recurso, engata logo noutra. Para saber da anterior tenho de lhe pegar na deixa. Volta e meia interroga: “onde é que eu ia?”.
É um homem com cerca de 70 anos. Apesar das suas atribulações cardiovasculares parece vender saúde. A sua vontade de viver percebe-se a olho nu. A força mental e física parecem sair em fluídos do seu corpo bem constituído. É um ex-empresário aposentado que, como tantos da década de 1940 e 1950, subindo a corda a pulso, atingiu uma posição confortável do ponto de vista financeiro. Agora as suas preocupações são gerir bem o que conquistou com noites mal dormidas e lágrimas de suor.
Hoje veio cumprimentar-me. Pela face contraída, pareceu-me inquieto e que não estaria nos seus dias felizes. Interroguei-o directamente sobre o que se passava. Confidenciou que uma sua inquilina, caloteira, segundo as suas palavras, não lhe paga a renda há já quatro meses. Sem preparar muito bem a minha arma de arremesso argumentativo, atirei: agora a lei está mais facilitada para conseguir o despejo e extinguir o contrato. Contacte um advogado que resolve esse acordo com alguma rapidez. Acompanhado de um sorriso trocista, fixando-me com os olhos a querer saltar das órbitras, interrogou: “Quê? Advogados? Você não é deste mundo, meu amigo! A justiça não funciona! E eles sabem bem disso e aproveitam-se! Vou-lhe contar o que se passou, no ano passado, com um outro arrendamento frustrado. O arrendatário já me devia também seis meses. A conta já ia calada. Contactei-o várias vezes no seu restaurante para me pagar ou denunciar o contrato referente a um outro locado que ocupava. Com cara de pau, assim a apelar à minha calma e descaradamente a gozar com a minha cara, prometia liquidar o que me devia. Aquilo, pela falta de caracter dele, começou a mexer comigo. Falei com um advogado conhecido e propus-lhe que intentasse a correspondente acção de despejo contra a minha cedência de cinquenta por cento no débito do relapso. Isto é, ele recebia o que me era devido e ficava com metade. Como contrapartida não me levava nada pela prestação causídica. Disse logo que não aceitava. Pedi-lhe que me desse uma ideia dos custos de processo. Pela sua exposição dos trâmites que era necessário percorrer, incluindo o recurso, fiquei apavorado. No que entendi, pelo seu falar, nos próximos anos, nem ia recuperar os meus créditos nem reaver a chave do meu prédio. No fim da conversa ainda me queria limpar cinquenta euros. Fiquei indignado! Saí de lá a matutar em como havia de resolver o problema. A seguir fui falar com uns ciganos. Contei-lhes o que se passava e um deles perguntou: “é para limpar o gajo?”. Porra! Fiquei alarmado! Nada disso! Eu só queria que lhe pregassem um valente susto, só e mais nada! Não gostei daquilo! E vim embora novamente a pensar como haveria de recuperar o que era meu sem ter de matar alguém ou gastar uma fortuna.
Apesar da minha idade, cujas artroses e bicos de papagaio não me deixam, ainda tenho muita força. Sempre fui danado para a porrada, sobretudo quando vejo que me estão a calcar a alma. Desde os meus tempos de jovem que guardo lá em casa um cabo de enxada em madeira dura -nem sei bem a que árvore pertence. Sei é que quando o agarro entre mãos parece que sou tomado de forças hercúleas desconhecidas.
Uma semana depois de ter falado com os ciganos, num dia ao almoço, agarrei no pau e meti-me no carro em direcção ao estabelecimento do meu inquilino incumpridor. Eu estava fora de mim. Era cerca do meio-dia e a sala do restaurante estava a começar a encher. Entrei lá disposto a tudo. Desse para o que desse! Perante quem me ouviu, de madeiro em riste, com grito colérico, disse: ou me dá imediatamente a chave da minha casa ou parto já tudo a eito! Só queria que você visse o homem! Parecia que lhe tinham caído os tomates aos pés! Estava completamente acagaçado. Como um cãozinho amestrado foi lá dentro ao escritório e entregou-me a chave em mão. É certo que eu disse adeus ao crédito mal-parado, mas pelo menos resolvi o problema. Acha que se tivesse escolhido o advogado para me devolver o que era meu já teria solucionado este caso? Meu amigo, em Portugal a justiça é para os ricos. Só serve para arrastar nos tribunais e muitos se aproveitarem dela!”


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