De tempos a tempos, sem regra temporal, visita-me.
Já sei que, no mínimo vou estar duas horas a ouvir as suas histórias. As
palavras saem-lhe da boca da mesma forma que a água escorre da fonte e provinda
da montanha. Saem engatilhadas. Ainda está no meio de uma narração e, como
manobra de recurso, engata logo noutra. Para saber da anterior tenho de lhe
pegar na deixa. Volta e meia interroga: “onde
é que eu ia?”.
É um homem com cerca de 70 anos.
Apesar das suas atribulações cardiovasculares parece vender saúde. A sua
vontade de viver percebe-se a olho nu. A força mental e física parecem sair em
fluídos do seu corpo bem constituído. É um ex-empresário aposentado que, como
tantos da década de 1940 e 1950, subindo a corda a pulso, atingiu uma posição
confortável do ponto de vista financeiro. Agora as suas preocupações são gerir
bem o que conquistou com noites mal dormidas e lágrimas de suor.
Hoje veio cumprimentar-me. Pela face
contraída, pareceu-me inquieto e que não estaria nos seus dias felizes. Interroguei-o
directamente sobre o que se passava. Confidenciou que uma sua inquilina,
caloteira, segundo as suas palavras, não lhe paga a renda há já quatro meses.
Sem preparar muito bem a minha arma de arremesso argumentativo, atirei: agora a
lei está mais facilitada para conseguir o despejo e extinguir o contrato.
Contacte um advogado que resolve esse acordo com alguma rapidez. Acompanhado de
um sorriso trocista, fixando-me com os olhos a querer saltar das órbitras,
interrogou: “Quê? Advogados? Você não é
deste mundo, meu amigo! A justiça não funciona! E eles sabem bem disso e
aproveitam-se! Vou-lhe contar o que se passou, no ano passado, com um outro
arrendamento frustrado. O arrendatário já me devia também seis meses. A conta
já ia calada. Contactei-o várias vezes no seu restaurante para me pagar ou
denunciar o contrato referente a um outro locado que ocupava. Com cara de pau, assim
a apelar à minha calma e descaradamente a gozar com a minha cara, prometia
liquidar o que me devia. Aquilo, pela falta de caracter dele, começou a mexer
comigo. Falei com um advogado conhecido e propus-lhe que intentasse a
correspondente acção de despejo contra a minha cedência de cinquenta por cento
no débito do relapso. Isto é, ele recebia o que me era devido e ficava com
metade. Como contrapartida não me levava nada pela prestação causídica. Disse
logo que não aceitava. Pedi-lhe que me desse uma ideia dos custos de processo.
Pela sua exposição dos trâmites que era necessário percorrer, incluindo o
recurso, fiquei apavorado. No que entendi, pelo seu falar, nos próximos anos, nem
ia recuperar os meus créditos nem reaver a chave do meu prédio. No fim da
conversa ainda me queria limpar cinquenta euros. Fiquei indignado! Saí de lá a
matutar em como havia de resolver o problema. A seguir fui falar com uns
ciganos. Contei-lhes o que se passava e um deles perguntou: “é para limpar o
gajo?”. Porra! Fiquei alarmado! Nada disso! Eu só queria que lhe pregassem um
valente susto, só e mais nada! Não gostei daquilo! E vim embora novamente a
pensar como haveria de recuperar o que era meu sem ter de matar alguém ou
gastar uma fortuna.
Apesar da minha idade, cujas artroses e bicos de papagaio não me
deixam, ainda tenho muita força. Sempre fui danado para a porrada, sobretudo
quando vejo que me estão a calcar a alma. Desde os meus tempos de jovem que
guardo lá em casa um cabo de enxada em madeira dura -nem sei bem a que árvore
pertence. Sei é que quando o agarro entre mãos parece que sou tomado de forças
hercúleas desconhecidas.
Uma semana depois de ter falado com os ciganos, num dia ao almoço, agarrei
no pau e meti-me no carro em direcção ao estabelecimento do meu inquilino
incumpridor. Eu estava fora de mim. Era cerca do meio-dia e a sala do
restaurante estava a começar a encher. Entrei lá disposto a tudo. Desse para o
que desse! Perante quem me ouviu, de madeiro em riste, com grito colérico,
disse: ou me dá imediatamente a chave da minha casa ou parto já tudo a eito! Só
queria que você visse o homem! Parecia que lhe tinham caído os tomates aos pés!
Estava completamente acagaçado. Como um cãozinho amestrado foi lá dentro ao
escritório e entregou-me a chave em mão. É certo que eu disse adeus ao crédito
mal-parado, mas pelo menos resolvi o problema. Acha que se tivesse escolhido o
advogado para me devolver o que era meu já teria solucionado este caso? Meu
amigo, em Portugal a justiça é para os ricos. Só serve para arrastar nos
tribunais e muitos se aproveitarem dela!”
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