É segunda-feira, o dia seguinte depois do Cortejo
da Queima das Fitas. Na generalidade, logo de manhã toda a Baixa estava conspurcada e o
vomitado e copos plásticos espalhados pelo chão eram a normalidade que já não
causa espanto. O lixo, mais que certo pela elevada produção do dia de ontem não
pode ser recolhido e pelo meio-dia desta segunda-feira apresenta-se a todos
quantos percorrem as ruas estreitas e largas. No Largo da Freiria uma mulher
mexe e remexe os detritos em busca de alguma coisa de valor.
Na Praça 8 de Maio, terreiro do Panteão
Nacional, um vagabundo, com ar escanzorrado, dorme no parapeito do nobel lago
que já foi o que foi e agora voltou ao mesmo. Os transeuntes param, olham o
homem, murmuram qualquer coisa e seguem em frente. Os turistas tiram fotos à
displicência do vadio. Dois agentes da PSP passam ao largo e, ou fazendo que não
vêem ou vendo e pelo costume nem ligaram, no seu passo cadenciado, continuam a
sua marcha. Dois homens estacam e apontando o quadro de miséria comentam
qualquer coisa. Um deles aponta a máquina fotográfica e recolhe a imagem. Eu
aproximo-me e consigo ouvir: “isto é
vergonhoso! Neste local da cidade, que deveria merecer o maior respeito,
ninguém se importa! Vou à esquadra dar conta deste quadro miserável. A PSP tem
de intervir!”. Aguardei. Já agora sempre queria saber o que lhe iriam dizer.
Passados cerca de dez minutos regressou sozinho. “Disseram-me que iriam mandar cá alguém. Referiram também que o cidadão de
aspecto andrajoso que dormitava aqui também tinha direitos. É mais que óbvio
que não se vão interessar por isto”, entabulou com algum desânimo para o
companheiro de ocasião, Jorge Oliveira, meu amigo e conhecido. Pergunto o nome
a este cidadão diferente da maioria, que ousa afrontar um situacionismo que se
tornou endémico, e diz chamar-se José Vidal. Confidencia-me que esteve no Norte
da Europa e ver lá uma coisa destas sem intervenção social ou da polícia é
impensável. Neste meio tempo passam mais dois agentes da PSP no lado oposto do
parapeito –embora fosse impossível não se aperceberem do homem deitado. Seguem
a sua ronda e param para conversar com um popular no lado lateral do vadio
deitado ao Sol. O Jorge Vidal, como insatisfeito com a sua ida sem resposta à Esquadra,
atira para o Jorge Oliveira: “vou falar
com eles. Isto não pode ser assim!”. Interpelou os dois agentes da autoridade
sobre a situação. Calmamente os dois cívicos fizeram marcha-atrás e
encaminharam-se para o turista de pé descalço. O homem abriu os olhos, mais que
certo com vontade de mandar uns arremedos a quem ousava interromper a sua
soneca, mas, perante as fardas, susteve a reclamação. Levantou-se e foi
sentar-se no patim do estabelecimento de óptica mesmo ali e a dois passos.
No pórtico do Panteão Nacional,
igual a todos os dias, um cego cantarola a lengalenga da pedincha e o “fininho”, um nosso “cromo” morador num destes becos, estende a mão a quem se encaminha
para o templo da Igreja de Santa Cruz e vai rogar a Deus pelos pobrezinhos.
A vida continua nesta cidade de muitos copos e
bebedeiras, vomitados e lixo de mais. Aos poucos, perdendo a capacidade de
reacção, vamos todos convivendo e adptando-nos a esta habituação miserável de deslizar pelo cano. Felizmente que há sempre um
Vidal na multidão que ousa levantar a mão. Embora lhos desse pessoalmente, parabéns
a este cidadão que não se deixa abater.
1 comentário:
Caro Luís,
O rapazola (que completará 43 anos em Agosto), além de problemas cognitivos notórios (frequentou a APPCDM muitos anos) que o impediram de saber sequer assinar, muito menos ler, tem o péssimo hábito de beber uns copos a mais.
Não o vi no cortejo, mas acredito que tenham sido umas frescas as causadoras de tal "soneira".
Amanhã vou falar com ele e "puxar-lhe as orelhas".
Abraço!
João Pedro Gaspar
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