(Imagem da Web)
Dona Licas, dama de muitas virtudes, cujas
primaveras o tempo apagou da sua memória, é uma senhora muito prendada, de
gestos finos e delicados, plena de boas maneiras, sempre a autocorrigir-se,
exigente consigo e com os outros, um modelo de pessoa muito “sui generis”.
Quando interpelada, torna-se impertinente, empertigada e exige sempre ser tratada de menina. A menina isto, a menina aquilo. E jamais de você. “Você é estrebaria”, replica Dona Licas, exaltada, quando alguém, nestes termos impróprios, assim se lhe dirige. “Que saudades do meu tempo! Antigamente é que havia respeito, hoje não!”, desabafa, desolada, a velha senhora.
A menina Licas ficou solteira. Quis Deus e o destino que os homens de H grande fossem poucos, ceguetas, e não reparassem nas suas grandiloquentes virtudes de santidade, magníficas qualidades humanas e extremosa beleza. A menina nunca lhes perdoou tamanha afronta e, com o passar do tempo, foi-se tornando introspetiva e solitária. Não é que não tivesse muitos pretendentes, mas queriam gozo antes do casamento e, sem aliança no dedo, nem um beijo sequer, isso é que era bom! homessa! Licas não era dessas desenvergonhadas!
Mas a solidão é um buraco e, assim sendo, qualquer coisa serve para o tapar. E a menina só sofreu dessa angústia terrível até conhecer a Milú. Melhor dizendo, a “menina” Milú, como é carinhosamente tratada pela Dona Licas.
A “menina” Milú é uma “boneca” de quatro patas, o mais belo e cobiçado exemplar canino que a natureza criou. Pelo sedoso, luzidio, bem tratado e perfumado. Inteligente. Tão inteligente que até entende a dona, quando esta trava consigo longas conversas sem nexo e sem fim.
Seguindo os hábitos da sua mestra não dá confiança a qualquer um –entenda-se rafeiro, obviamente. Quando passeia, de porte altivo, presa pela trela da sua protetora, sente-se uma rainha. Com passos aveludados, ereta, de estudada volúpia, um lânguido e libidinoso brilhozinho nos olhos, sente que é seguida por mil olhares caninos. É um deleite ver os pobres canídeos espumarem de desejo e de raiva. Ficam como petrificados, de queixo em baixo e baba a correr sem fim. Mas, tal como a sua dona, há de morrer virgem, imaculada como deus a botou neste mundo. Não será um qualquer vira-latas que irá usufruir de tão belos prazeres carnais. Ou não estivesse atenta a menina Licas.
No prédio, onde mora, é normal os vizinhos –esses empedernidos alcoviteiros, como são apelidados carinhosamente por Licas- ouvirem, diariamente, até altas horas da noite, diálogos acesos, misturados com latidos, travados entre dois seres tão aparentemente diferentes mas tão unidos pelo mesmo sentimento. Ora são ordens cortantes, como disciplina militar num campo de treinos, ora são interrogações violentas, para logo a seguir, como arte mágica, virem as respostas soletradas amorosamente pela menina Licas: “sabes que horas são?? ...Não vês que já é tarde?!! ...São horas de fazer óó, Miluzinha, querida...!”
A menina Licas mora no centro histórico há mais de cinquenta anos, numa rua estreita por onde passou o Eça, como gosta de dizer. Habita um andar degradado, mas também o que é que há de fazer? Não encontra o safado do senhorio! “Vejam bem que pago, por mês, dois contos na Caixa?! ...Uma fortuna há cinquenta anos!” –replica com ar de grande solenidade e trocando os euros por escudos. “E agora o malandro não quer saber do que é seu! Admite-se uma coisa destas? As leis estão sempre pelo mais forte!” –desabafa, inconformada e inconsolável, a menina Licas.
Antigamente saía pela manhã a passear a Milú pela Baixa. É claro que, naturalmente, como animal este bijuzinho tem necessidades fisiológicas e normalmente fá-las junto às portas das lojas comerciais. “Que raio de mania havia a “menina” de apanhar”, pensava com interrogada comiseração a menina Licas. Mas são gostos, e gostos não se discutem, respeitam-se! É preciso ter tolerância e paciência com outros seres mais vulneráveis. E lá nisso, Dona Licas tem muito jeito para os animais. Até pertence à Sociedade Protetora. “Coitadinhos dos bichinhos, que são abandonados por todos…”-costuma apregoar, a quem a quer ouvir, com rosto fechado e olhar de pesar.
Porém, havia um senão: os comerciantes não davam valor às prendas que a Miluzinha deixava às suas portas. “Gente ignorante e mal-agradecida, são o que são! Então não sabem que um presente de animal junto ao patim pela manhã é negócio todo o dia e sempre assim?”. Interroga a doutorada em ciências canino-populares. Vai daí, começaram a lançar olhares pouco amistosos à rainha das cadelas. Por pouco não havia uma luta esganiçada se a Miluzinha, tão delicada e coitadinha, não se encolhesse e se fosse recolher para os braços da sua amada e guardiã. Perante as circunstâncias, a menina Licas teve de mudar os hábitos à sua “mais-que-tudo” Milú. Agora passeia à noite e é ver, com alegria, a esplendorosa donzela canina a defecar livremente às portas, nas ruas, nas vielas e onde lhe apetecer. “Isto é que é liberdade”, exclama a Dona Licas para a Milú, que não responde por estar ocupada em deixar mais um presente, grande e bem cheiroso, mesmo no centro do Largo.
Mas a Miluzinha tem um desejo secreto: deixar as suas prendas à porta da Câmara Municipal. “E porque não, se há regulamentação mas não é cumprida?”, interroga com ar ensoberbecido a menina Licas.
Quando interpelada, torna-se impertinente, empertigada e exige sempre ser tratada de menina. A menina isto, a menina aquilo. E jamais de você. “Você é estrebaria”, replica Dona Licas, exaltada, quando alguém, nestes termos impróprios, assim se lhe dirige. “Que saudades do meu tempo! Antigamente é que havia respeito, hoje não!”, desabafa, desolada, a velha senhora.
A menina Licas ficou solteira. Quis Deus e o destino que os homens de H grande fossem poucos, ceguetas, e não reparassem nas suas grandiloquentes virtudes de santidade, magníficas qualidades humanas e extremosa beleza. A menina nunca lhes perdoou tamanha afronta e, com o passar do tempo, foi-se tornando introspetiva e solitária. Não é que não tivesse muitos pretendentes, mas queriam gozo antes do casamento e, sem aliança no dedo, nem um beijo sequer, isso é que era bom! homessa! Licas não era dessas desenvergonhadas!
Mas a solidão é um buraco e, assim sendo, qualquer coisa serve para o tapar. E a menina só sofreu dessa angústia terrível até conhecer a Milú. Melhor dizendo, a “menina” Milú, como é carinhosamente tratada pela Dona Licas.
A “menina” Milú é uma “boneca” de quatro patas, o mais belo e cobiçado exemplar canino que a natureza criou. Pelo sedoso, luzidio, bem tratado e perfumado. Inteligente. Tão inteligente que até entende a dona, quando esta trava consigo longas conversas sem nexo e sem fim.
Seguindo os hábitos da sua mestra não dá confiança a qualquer um –entenda-se rafeiro, obviamente. Quando passeia, de porte altivo, presa pela trela da sua protetora, sente-se uma rainha. Com passos aveludados, ereta, de estudada volúpia, um lânguido e libidinoso brilhozinho nos olhos, sente que é seguida por mil olhares caninos. É um deleite ver os pobres canídeos espumarem de desejo e de raiva. Ficam como petrificados, de queixo em baixo e baba a correr sem fim. Mas, tal como a sua dona, há de morrer virgem, imaculada como deus a botou neste mundo. Não será um qualquer vira-latas que irá usufruir de tão belos prazeres carnais. Ou não estivesse atenta a menina Licas.
No prédio, onde mora, é normal os vizinhos –esses empedernidos alcoviteiros, como são apelidados carinhosamente por Licas- ouvirem, diariamente, até altas horas da noite, diálogos acesos, misturados com latidos, travados entre dois seres tão aparentemente diferentes mas tão unidos pelo mesmo sentimento. Ora são ordens cortantes, como disciplina militar num campo de treinos, ora são interrogações violentas, para logo a seguir, como arte mágica, virem as respostas soletradas amorosamente pela menina Licas: “sabes que horas são?? ...Não vês que já é tarde?!! ...São horas de fazer óó, Miluzinha, querida...!”
A menina Licas mora no centro histórico há mais de cinquenta anos, numa rua estreita por onde passou o Eça, como gosta de dizer. Habita um andar degradado, mas também o que é que há de fazer? Não encontra o safado do senhorio! “Vejam bem que pago, por mês, dois contos na Caixa?! ...Uma fortuna há cinquenta anos!” –replica com ar de grande solenidade e trocando os euros por escudos. “E agora o malandro não quer saber do que é seu! Admite-se uma coisa destas? As leis estão sempre pelo mais forte!” –desabafa, inconformada e inconsolável, a menina Licas.
Antigamente saía pela manhã a passear a Milú pela Baixa. É claro que, naturalmente, como animal este bijuzinho tem necessidades fisiológicas e normalmente fá-las junto às portas das lojas comerciais. “Que raio de mania havia a “menina” de apanhar”, pensava com interrogada comiseração a menina Licas. Mas são gostos, e gostos não se discutem, respeitam-se! É preciso ter tolerância e paciência com outros seres mais vulneráveis. E lá nisso, Dona Licas tem muito jeito para os animais. Até pertence à Sociedade Protetora. “Coitadinhos dos bichinhos, que são abandonados por todos…”-costuma apregoar, a quem a quer ouvir, com rosto fechado e olhar de pesar.
Porém, havia um senão: os comerciantes não davam valor às prendas que a Miluzinha deixava às suas portas. “Gente ignorante e mal-agradecida, são o que são! Então não sabem que um presente de animal junto ao patim pela manhã é negócio todo o dia e sempre assim?”. Interroga a doutorada em ciências canino-populares. Vai daí, começaram a lançar olhares pouco amistosos à rainha das cadelas. Por pouco não havia uma luta esganiçada se a Miluzinha, tão delicada e coitadinha, não se encolhesse e se fosse recolher para os braços da sua amada e guardiã. Perante as circunstâncias, a menina Licas teve de mudar os hábitos à sua “mais-que-tudo” Milú. Agora passeia à noite e é ver, com alegria, a esplendorosa donzela canina a defecar livremente às portas, nas ruas, nas vielas e onde lhe apetecer. “Isto é que é liberdade”, exclama a Dona Licas para a Milú, que não responde por estar ocupada em deixar mais um presente, grande e bem cheiroso, mesmo no centro do Largo.
Mas a Miluzinha tem um desejo secreto: deixar as suas prendas à porta da Câmara Municipal. “E porque não, se há regulamentação mas não é cumprida?”, interroga com ar ensoberbecido a menina Licas.
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