quinta-feira, 14 de maio de 2015

A LARANJA MECÂNICA DO FINGIMENTO





Quando visionei o vídeo de vários jovens a agredir um outro na figueira da Foz e difundido pelas redes sociais, na Internet, e que está a captar toda a atenção pública portuguesa, lembrei-me do filme “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, realizado em 1971, e que salvo erro vi, nessa década, no Teatro Académico de Gil Vicente. O enredo da fita cinematográfica, passado numa Inglaterra futurista, gira em torno da delinquência juvenil, gangues de jovens, onde a violência sociopática é gratuita, desde o estupro até à agressão, e imbricando no social, na economia e na política.
Perante este caso que durante uns dias se vai repetir vezes sem conta e até à exaustão, que provocou uma onda de indignação de norte a sul, como estão a reagir os vários intervenientes com responsabilidade, direta e indireta, nesta situação? Antes de prosseguir, deixo já uma ressalva, para mim, estes jovens –e junto também o agredido- só indiretamente, enquanto autores materiais, serão imputáveis de culpa. Estes adolescentes são o resultado de várias premissas aritméticas que extravasam o país há várias décadas –naturalmente que, enquanto pai, também me incluo.
Antes de prosseguir gostaria de deixar só uma pergunta no ar: este caso de bullying, agora tornado estrela no universo da trivialidade, é assim tão invulgar? Ou seja, caiu agora do céu aos trambolhões ou, ainda que em contornos diferentes, é mais banal do que se julga?
E agora vou retratar as várias reações. Comecemos pelos comentários deixados nas redes sociais, escritos por vários progenitores: “Pessoas dessas só mortas!! Quem concorda comigo?”; “Essas pitas deviam levar uma coça tão grande de um futuro namorado delas. Gente de merda”; “Essa Constança tem mesmo cara de p**a, cara de prostituta mesmo!”; “Já vi este vídeo mais de 6 vezes e aquelas vacas são as próprias a dizer que o miúdo não fez nada! Coitado do miúdo. Bom mesmo era tirar-lhes aqueles dentes todos a chapada ao pontapé!”; “Até eu lhes rebentava a tromba dessas duas GRANDES P***S não sei qual é a piada de estarem todos a ver e ninguém faz nada ainda riem. Todos uma cambada de FILHOS DA P**A. TANTA GENTE A MORRER E ESSA GENTINHA NINGUÉM OS MATA MAS.... QUE RAIVA!”; “Só espero que o rapaz que está agarrar a vítima também seja envergonhado e espancado a força toda!!! Pegar na cabeça dele e o espancar porco de merda!”; Era violar as gajas e atira-las para o mato! Bando de covardes!”; “COITADINHAS........!!!
DEVIAM SER VIOLADAS, ENRABADAS E DEIXADAS NA VALETA........ESCUMALHA DESSA DEVERIA SER ELIMINADA DA SOCIEDADE!”
A seguir vamos olhar as observações de gente famosa cá no bairro, assim no género, como esta: “Estou incrédulo com a juventude de hoje em dia! Como podem permitir uma coisa destas, isto chocou-me a mim mas tenho a certeza que também vos vai chocar! Digam não ao Racismo! Não ao Bullying! Não à Xenofobia! Não à Homofobia e outros mais... Acabem com isto por favor é duro, é horrendo... Alertem os vossos filhos, estejam mais atentos e não os deixem nunca esquecer os valores da vida e a base da educação”.
E outro ainda, inserindo as fotos dos envolvidos: “Estas são as duas jovens que agridem este miúdo que choca qualquer ser humano. Coloco aqui para que sintam a vergonha e a humilhação pública pela merda de pessoas que são. Espero que a escola e os pais saibam punir esta gente sem qualquer qualificação.”
Depois passo para a familiar do rapaz agredido. Sendo verdade que a mãe do rapaz aparentemente humilhado e seviciado teve conhecimento na altura, há cerca de um ano, veio agora formalizar a queixa na PSP, alegadamente, por ofensa à integridade simples e violação à imagem e à honra.
A seguir veio também o Ministério Público abrir um inquérito a este caso cujo resultado, mais que certo, sabemos que vai ser o arquivamento. Será que pela agressão, pelo alegado conhecimento da progenitora, a possibilidade de queixa já não teria prescrito? E se não tiver caducado o prazo pode provar-se que, por parte do ofendido, não houve consentimento? Repare-se que os factos foram passados na via pública, com transeuntes a circularem, e o rapaz, como seria normal numa situação de grande perigosidade, não solicitou ajuda. Aliás, pelas suas posições, com os braços atrás das costas e com as mãos cruzadas na barriga, pode perfeitamente presumir-se o seu conluio de livre vontade. E pela violação de imagem? Depois da exposição pública, com prejuízo evidente para todos, poderá ser atribuído um dano apenas a uma das partes?
Acho que, começando nos comentários nas redes sociais dos progenitores anónimos, passando nos recados dos famosos, nos pais destes adolescentes e acabando no Ministério Público, como virgens imaculadas que caíram ontem cá de paraquedas, todos defendem para a frente, fingindo que não sabiam de nada nem têm qualquer responsabilidade. O que torna este acontecimento verdadeiramente maquiavélico. Para agravar tudo, não vai servir de nada. Depois da poeira assentar tudo vai ficar igual. Isto é que é triste.


TEXTOS RELACIONADOS:

Sem comentários: