quinta-feira, 27 de março de 2014

UM PRESÍDIO CHAMADO BAIXA



A dona Graça é uma cozinheira de excelência e, durante dois anos, passou agruras na Rua Velha. Depois desta angústia que a ia mandando para o charco esteve estabelecida no Snack-bar Marcius, na Rua da Sofia, nos últimos cinco anos e até agora. Amanhã, sexta-feira, será o seu último dia de trabalho na Baixa. Passou o seu negócio a uma nova família. Os novos adquirentes, tenho a certeza porque sou cliente diário, herdam uma boa casa feita a pulso pelo desempenho esforçado do casal Victor Pereira e Graça Santos.
Há um ano atrás entrevistei a dona Graça e era patente o cansaço da sua luta contra moinhos de vento e pelo continuar a pugnar por uma zona que, pelo abandono das entidades oficiais, leva à saturação e ao baixar os braços do mais forte. Por isto tudo, tenho a certeza, esta lutadora mulher vai embora. Não é que entenda que os que estão são os melhores e quem vem de novo fique aquém. Nada disso! É a dinâmica natural das coisas. O que quero dizer é que estes partem, aqueles partem e todos, todos, se vão! A Baixa fica sem mulheres, sem homens, e prenhe de solidão. Tento mostrar que se pressente aqui um permanente desalento e o desistir de lutar por quem cá passou parte da vida.
A Baixa, nos últimos anos, está transformada num presídio. Só cá permanece quem não tem hipótese de remover a pena e partir para a libertação. Nos últimos anos tem sido assim. Vão embora de vez os ressarcidos, os que morrem agarrados ao balcão e os que são obrigados a abandonar por insolvência dos seus negócios. Por isso mesmo, ambos, não voltarão mais –em metáfora, e que já teriam cumprido a sua punição. Depois há os precários, aqueles cujos espaços são de sua propriedade e optam por arrendar e desistir da actividade comercial. Como se podem dar ao luxo de ter um pé dentro e outro fora, escolhem o melhor para os seus interesses a permanecer diariamente e morrerem de tédio todos os dias um pouco. Assim de repente e nos últimos tempos, que me lembre, foi o Paiva, com duas sapatarias, na Rua Eduardo Coelho, foi a sapataria Angel, na mesma rua, foram duas farmácias na Praça do Comércio, foi uma casa de tecidos na Rua do Corvo, foi a Boutique Romy, no Largo da Freiria, e outras que agora não recordo. E depois há então os outros, os eternos, os condenados a prisão perpétua, que não podem ter ordem de soltura por vários motivos -por dívidas, amarrados a compromissos inadiáveis, e colados a funcionários com várias décadas e que não podem indemnizar- e cuja permanência nesta prisão é a única opção possível, mesmo até enquanto fonte única de rendimentos. Depois há ainda os utópicos da esperança, sonhadores por força da conjuntura e à procura de um amanhã melhor, que voluntariamente vêm para as ilusórias grades em busca de uma ocupação porque estavam desocupados e com um sentimento de inutilidade. Como desconhecem completamente este ambiente presidiário basta um mês para quererem a liberdade. Porém, é muito tarde para voltar atrás e, por força de um destino que escolheram, passam a presos efectivos.

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