LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: A SOCIEDADE ESPETÁCULO"; "ESTA BAIXA ENTREGUE A SI MESMO"; "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O ADVOGADO DOS POBRES DIABOS"; e "O CARRIÇO NÃO CANTARÁ MAIS"
REFLEXÃO: ESTA SOCIEDADE ESPETÁCULO
Em Itália, num concurso para novas vozes, “The Voice”, apareceu uma freira a cantar
espetacularmente e encantou o público e o júri presente. O vídeo está a correr
o mundo.
Por um lado, imediatamente surge a pergunta:
se acaso a religiosa se apresentasse sem uniforme teria o mesmo sucesso?
Provavelmente passaria à eliminatória seguinte mas a sua prestação não sairia
daquelas quatro paredes. Vivemos hoje numa sociedade que, a todo o gás, procura
o diferente. Então se estiver uma farda no meio é tiro e queda. Adoramos,
todos, o lado cinzento do conspícuo, do notável, daquele que, para além de ter
o dever de aparentar, tem de ser obrigatoriamente respeitável. Há aqui um certo
voyeurismo, um perseguir uma imagem
que não existe. Um espreitar por detrás do espelho.
Por outro, imaginemos que esta cena se passava
em Portugal. O que teria acontecido? Mais que certo, teria caído o Carmo, a Trindade e a eminência do bispo da diocese onde a servidora de Deus
estaria vinculada. Somos um país muito sério. E com coisas sérias não se brinca, diriam os puritanos. O respeitinho é muito lindo. Ou seja, o
desejo de que este espetáculo ocorra mantém-se, simplesmente às claras jamais!
E não há coragem para furar o situacionismo. A gente gosta, mas vai contra a vontade popular –que curiosamente só
existe em ilusão. Não pode ser! E não há discussão!
Ainda há dias ocorreu numa discoteca do país
um strip-tease feito por um agente da
GNR, fardado e com arma no coldre. Caiu a mácula na instituição da Guarda
Nacional Republicana. Vozes da terra e do céu levantaram-se em coro contra a
afronta. Como é de prever, o aventureiro militar, mais que certo, corre o risco
de expulsão por, alegadamente, envergonhar a organização de força policial.
Está certo? Não sei! Há sempre duas formas de avaliar o mesmo problema. Então
do ponto de vista ideológico é fatal. Para a direita, sempre tão agarrada aos velhos costumes, é um escândalo
sem precedentes. Queime-se o homem no pelourinho da insanidade! Para a
esquerda, que adora o corte fraturante mas com calmex, é um “nim”, nem
assim, nem o contrário. Aguarda-se
serenamente as conclusões do inquérito, exclamarão com solenidade, sem se
comprometerem e embrulhados na libertária impostura de sempre, no manto diáfano
da nebulosa.
Para mim, que sou liberal e procuro não ser
dissimulado e escrevendo o que penso, analisando este caso do militar GNR,
creio que o homem se excedeu, sobretudo usando arma no show. No entanto, creio que se deve ter uma postura desvalorizadora
do ato em si mesmo. À luz do bom senso, trata-se de uma rotura entre a tradição
secular militar, estática e assente num conservadorismo hipócrita, e os tempos
hodiernos, sujeitos à sua dinâmica natural e onde a liberdade individual tende
a libertar-se de um espartilho que é meramente de encenação social. Saliento
que não defendo o “vale tudo”! Pugno
é por uma sociedade mais transparente e equilibrada, justa no julgamento do
erro, e frontal na mudança dos costumes. Sobretudo, para que se não continue a
proceder num fingimento ridículo. Abaixo o cinzentismo de todos nós. Que o
vídeo da freira italiana nos faça refletir.
ESTA BAIXA ENTREGUE A SI MESMO
José Barata está inconsolável. A sua casa, na
Rua da Fornalhinha, foi assaltada na noite desta penúltima quarta-feira. Nos
últimos seis meses é a terceira vez. Nos três assaltos há um ponto comum, os
gatunos procuram metais, sobretudo cobre. Deram-se ao vagar de, calmamente, desmontar o interior de um esquentador e
levarem os tubos. Levaram também uma série de miudezas. O mais valioso desta
intrusão foi um quadro a óleo, original, de Carlos Reis com as medidas, mais ou
menos, de 25X40. Desapareceu também uma imagem de Santa Filomena. Nas vezes
anteriores levaram as torneiras e até o contador de água. “Estou saturado disto”, diz-me em desalento. “Vivo em Lisboa, na Parede, e venho cá várias vezes ao mês e
ultimamente deparasse-me este quadro de destruição. Já me rebentaram a porta
várias vezes. Desta última foi com um pé de cabra na zona das dobradiças. Comuniquei
sempre as ocorrências à PSP. Os anteriores assaltos foram arquivados por falta
de provas. Este último, já sei, vai ter o mesmo destino. Quando interrogo a
polícia pela falta de vigilância respondem-me que não têm meios. E os nossos
valores? A nossa segurança? Como é que é? Para que pagamos impostos sobre o
património? Se não fossem as minhas memórias…”
E DA LONDRES NADA?
A sapataria Londres, situada no rés-do-chão do
mesmo edifício, encontra-se encerrada, à ordem do tribunal e por motivo de
falência do comerciante, há cerca de 6 anos. José Barata lamenta a morosidade
do processo judicial. “Veja bem que o meu
inquilino fugiu sem me pagar as rendas de um ano e já em atraso. Como se fosse
pouco, tenho de aguentar este tempo todo sem poder aceder ao que é meu. Mais,
mas como proprietário sem direito à posse, continuo a ser responsável pelas
obrigações decorrentes da loja. Ainda agora, para impedir a ocupação selvagem
por sem-abrigo, tive de colocar um painel em chapa que me custou 500 euros.
É assim que se procura revitalizar o Centro Histórico? Um proprietário,
em face de uma insolvência do inquilino, merece algum respeito?”. Interroga
o dono do imóvel.
A CASA DAS AMÊNDOAS
Continua José Barata, “na década de 1930, quando nasci, os meus avós exploravam a Casa das
Amêndoas, aqui, ao lado, na Rua Eduardo Coelho, número 26, onde é agora a
Sapataria Trinitá, do senhor Quirino. Tenho uma ternura muito grande por esta
zona, sabe? Andei por lá de gatas e foi lá que aprendi a dar os primeiros
passos. Sabe que ainda conservo na minha mente o cheirinho da amêndoa torrada,
como se fosse hoje? Se não fossem estas recordações já tinha ido embora há
muito tempo. Sinto-me impotente. Estou farto de ser tratado pelo Estado como
coisa!”
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O ADVOGADO DOS POBRES DIABOS
Lembro-me
muito bem dele no início da década de 1980. Nessa altura, conservava a mesma
timidez e contenção no falar –como hoje- e, naturalmente, tinha melhor aspeto
físico. Para além de ser mais novo apresentava-se sempre de fato e gravata
como qualquer causídico. Hoje o tempo, como castigo ou não, parece ter passado
por cima da sua pessoa e agora já só resta o mesmo sorriso de menino, o ar de
bom samaritano, e o falar calmo e mais espaçado, como se procurasse as palavras
no éter. Recordo bem o então advogado Rui Fernando de Mesquita Figueiredo, o doutor Mesquita como era conhecido na
zona da Sé Velha, na Alta da cidade. Era uma espécie de solicitador dos mais
carenciados que, quase sempre com um “grão
na asa”, nos fazia lembrar o doutor
Ezequiel Prado, da novela Gabriela, Cravo e Canela. A troco de nada, ou
ressarcido tantas vezes por pouco mais do que uma cerveja, defendia todos. Estou
convencido que nunca teria ganho dinheiro com a advocacia. Se calhar, por andar
amiúde abraçado ao deus Baco a saúde, quem sabe por ciúmes, não lhe perdoou e
há poucos anos teve um AVC, acidente Vascular Cerebral. Mas como a natureza
compensa quem carrega humanidade, recuperou parcialmente e podemos vê-lo tantas
vezes a cruzar-se connosco nas ruas largas. Vamos saber mais do doutor
Mesquita. Fale, apresente-se, senhor doutor:
“Nasci em Coimbra há 79 anos –como curiosidade, ontem, dia 27, celebrei
o meu aniversário. Entrei na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em
1953 e, juntamente com a minha mãe, fui morar para a Rua dos Coutinhos. Em
1958, já licenciado fui exercer para Moçâmedes e Novo Redondo, em Angola. A
minha mãe continuou por cá na mesma morada. Por lá, em terras africanas, fui
também professor do Ensino Técnico –ensinava as cadeiras de direito, no Curso
Comercial. Foi o melhor tempo da minha vida! Quando se deu a independência, em
1974, regressei novamente a Coimbra, à Sé Velha, à Praça Vermelha como era
então conhecida. Nunca me meti em política. Sempre estive alheado. Era
respeitado por todos. Sempre tratei bem toda a gente. Bebia um copo com
qualquer um. Talvez por ser formado e ser, de certo modo, o advogado dos
pobres, fui poupado algumas vezes. Na cidade, tive escritório na Avenida Fernão
de Magalhães e na Rua da Sofia. Nunca ganhei dinheiro a advogar. Dava apenas
para as despesas.
A minha mãezinha morreu já há muitos anos e larguei tudo o que me
recorde álcool. Deixei também de exercer advocacia há cerca de uma década. Atualmente,
estou a ser acompanhado no Centro de Dia 25 de Abril, no Ateneu de Coimbra.
Tratam-me muito bem. Ainda ontem me deram banho porque já não posso. Os seus
trabalhadores são o meu Anjinho da Guarda. Tenho familiares mas estão muito
longe. Se não fosse o Centro de Dia não sei o que seria de mim! Recebo de
Reforma 369 euros. É pouco! Pouquíssimo, se comparar com a verba que eu ganhava
em África e quando trabalhava aqui. Está tudo bem para mim. Não me enervo!
Estou em paz com o mundo! Só quero saúde, descanso e bom trato. E mais nada!”
O CARRIÇO NÃO CANTARÁ MAIS
Na semana passada, num acidente deveras estúpido, faleceu o
nosso amigo Joaquim Carriço, de 67 anos. Se toda a morte é trágica e sinónimo
de dor para quem fica, mais o é ainda quando o finar de alguém, no derradeiro
estertor, ocorre com grande sofrimento de impotência de quem o presencia e num
cenário completamente improvável.
Com mais dois amigos, estava à
pesca na Costa Nova. Por volta do meio-dia, pegou numa sandes e três cervejas
–uma para cada um- e deu um dentada no pão. Engasgou-se e sentiu-se sufocar.
Perante a incapacidade e o desespero de evitar um fim anunciado, Rui Alves, um
dos seus acompanhantes e que tudo tentou para o fazer voltar à normalidade, apertando-lhe
o peito e tentando expulsar o pão da sua garganta com massagem cardíaca, não
conseguiu evitar a fatalidade e o Carriço exalou o último suspiro nos seus braços.
Chamaram o INEM mas, segundo as declarações desta testemunha, “os serviços de
emergência só chegaram 25 minutos depois. Ao que parece trocaram o endereço. Os
bombeiros chegaram primeiro que os cuidados médicos. Ainda nem estou em mim. O
meu melhor amigo morreu nos meus braços e sem que eu pudesse fazer alguma
coisa! A vida é muito injusta, carago!”
O Joaquim trabalhava como
odontologista, com consultório no Largo das Ameias, e, pela sua dedicação, era
uma presença importante na Baixa onde detinha muitos amigos. Para além de tudo
isto era meu vizinho. Nos Carvalhais de Cima, não se ouvirá mais a voz grave e
melodiosa do Carriço a cantar o fado. Desde os seus amados cães até aos
passarinhos do seu quintal, e sobretudo por todos nós, os seus confinantes que
o estimávamos muito, vamos sentir a sua falta. Descanse em paz, meu amigo.
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