sábado, 15 de março de 2014

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (38): O "ZÉ" MARIA DO ARCÁDIA"




 Há cerca de cinco anos comecei a escrever a primeira história sobre a minha época de menino passada em Barrô, a aldeia pobre, como pobres eram os tempos que decorriam em finais de 1950, no país. Materialmente quase faltava tudo a não ser uma fé inabalável de que, um dia, melhores tempos viriam.
Quando escrevi o primeiro parágrafo da minha primeira crónica estava longe de pensar que passaria dali e que chegaria à terceira ou à quarta. Mas é engraçado, comecei a remexer nas memórias e, como uma nascente de água que surge do interior da terra como milagre da Natureza, foram surgindo outras, outras e outras. Comecei a falar com pessoas idosas da povoação, cheguei à 36ª, e hoje já vou na 38ª. E ainda não acabei. Ainda há muito mais para contar. Se a vida não me faltar, conto um dia destes, não sei quando, passar todas estas narrativas para livro.
Há cerca de três anos “entrevistei”, gravando a conversa, o meu conterrâneo José Maria Cerveira. Em Barrô foi sempre conhecido por “Senhor José Maria”. Em Coimbra, sobretudo na Baixa, era carinhosamente conhecido por “Zé” Maria do Arcádia” –isto por analogia ao café com o mesmo nome, de que foi proprietário e infelizmente ambos já desaparecidos, e um dos mais importantes centros de tertúlia. Entre mim e o meu amigo José Maria, ficou assente que escreveria as suas declarações para juntar um dia às memórias de todos nós. O tempo foi passando, sempre a escassear tomado por outras iniciativas, e nunca mais ouvi a cassete. Infelizmente quis o acaso que, de repente, esta semana, fosse confrontado com o seu desaparecimento físico do nosso mundo dos vivos. Como prometer é dever, vou iniciar esta 38ª história da minha aldeia com as suas palavras e em homenagem póstuma à sua pessoa. Porque a tecnologia permite que a nossa voz não se extinga, vou então ligar o gravador. Vamos ouvir o Senhor José Maria:


“Nasci na Carreira, Lograssol, porque a minha mãe era da Carreira. O meu pai é que era de Barrô. Era família de um célebre advogado, doutor Alexandre Assis Leão, que foi um dos fundadores da Sociedade Águas de Luso. Teria sido por volta de 1900, creio. Em Barrô não ficaram descendentes porque a família tinha uma doença de pele que era transmissível –talvez a psoríase, não sei, a minha mãe é que contava. Este advogado tinha duas irmãs, uma era dona Justina e a outra… (agora não me vem à memória). A dona Justina não tinha  filhos. Suponho que havia alguns desentendimentos com os irmãos. Então o irmão mandou-lhe fazer uma casa à frente –que é a casa que eu tenho. A dona Justina enviuvou. Tinha uma empregada doméstica (criada) que era a minha visavó. Os descendentes desta acabam por casar em Vila-Nova (de Monsarros) com uma família de apelido Cerveira, cujos filhos destes vieram a ser os herdeiros da família do doutor Assis Leão. O meu avô apanhou a parte da dona Justina, o Manuel Cerveira, que era o pai da dona Faninha -que veio a casar com o senhor Cabral- e da dona Augusta que estava no Luso, apanhou a outra parte. O doutor Assis Leão tinha uma casa em Luso que era onde ia fazer as suas férias de verão. Era a “Aliança Velha”, que hoje pertence aos Carvalhos, na Venda-Nova. O doutor Assis Leão tinha uns afilhados. Um deles era o Alexandre de Almeida, que era também seu afilhado –não sei se conheceu o Alexandre de Almeida? (Que veio a ser o dono dos hotéis Astória, em Coimbra, e dos Palace, no Buçaco e na Curia) E a casa  que faz gaveto no Luso foi-lhe doada. Então, continuando, do casamento do meu avô com a minha avó de Vila-Nova nasce o meu pai, que viria a ser filho único. Entretanto o meu pai meteu-se nuns negócios que não lhe foram favoráveis. Fez uma casita no Luso onde tinha lá uma merceariazita, na Venda-Nova –que mais tarde esteve lá o Aníbal Bernardes Simões, que vendia ovos moles e doce de ovos, ao lado do Carlos Castro. O meu pai morreu cedo, com 36 anos, eu teria 18 meses. Havia mais duas irmãs. Tínhamos problemas económicos. Fomos para a Carreira para casa dos meus avós maternos. O meu avô paterno entretanto morre, morreu em casa do meu pai, e fica a minha avó paterna, essa é que ficou lá por Barrô. Depois ficou acamada e foi para a casa das irmãs para Vila-Nova. E então fica a minha mãe só comigo e com todos os problemas. E é o meu avô materno que vai pagar todas as despesas e as dívidas do meu pai. 

A ESCOLA...

Depois eu não fui grande aluno. Fui fazer a quarta classe em Anadia, porque na escola da Lameira de São Pedro era só até à terceira. Era a dona Palmira a professora. Para poder estudar em Anadia tive de ir para casa de uns tios. Tive uma boa classificação e fui fazer o exame de admissão a Aveiro no mesmo ano mas reprovei. Reprovei e fiquei muito triste com a história. Eu comecei também a ir para a escola muito tarde. Nós íamos de Barrô para a Lameira. A minha mãe estava com medo e tal e só me mandou já com muitos anos… e isso também me atrasou um bocado. Bem, a vida foi por ali acima e fiz aqui, em Coimbra, a Escola Brotero. Não fiz o liceu. Andei por aqui agarrado aos livritos sempre, e estive em casa da minha irmã, na Mealhada. E foi aqui que vim a conhecer a Maria do Céu, a minha mulher, filha do Manuel Maria Gaitas e que era negociante de peixe. Nessa altura o Joaquim de Matos, de Barrô, era lá “choffeur” e um homem muito estimado mas queria que o meu sogro lhe desse sociedade lá no peixe. Mas o meu sogro tinha quatro filhos para encaminhar e entendia que não lhe podia dar sociedade, mas entretanto como ele tinha uns valores… E como eu não seguia a “indústria” (comércio de peixe) –isto já depois de ter casado- e ter feito uma sociedadezinha na Mealhada com um senhor e representávamos os vinhos Messias. Entretanto, nesse espaço de tempo, há um empregado de mesa aqui do Nicola, em Coimbra, que convida o meu sogro para se estabelecerem aqui com um café –que na altura o espaço estava ocupado por uma loja de louças. Este empregado do Nicola, o senhor Abel, faz um negócio de trespasse da loja de louças para café em sociedade com o meu sogro e mais umas pessoas. Isto em 1948, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Eu ando por lá, pela Mealhada, com os meus negócios, da venda dos vinhos e essas coisas, o que me deu muita aprendizagem essa situação. Nesta altura eu vivia em casa da minha irmã, na Mealhada. Embora convivesse com uma rapaziada de Barrô, com pessoas amigas como seu pai, os seus tios. Então o café Arcádia começa a funcionar em sociedade com o senhor Abel, o meu sogro, umas pessoas relacionadas, uns amigos dele, e o Joaquim de Matos, que era seu “choffeur”. A dada altura os negócios dos vinhos, lá na Mealhada, não estavam a ser muito famosos e nasce o meu primeiro filho. Começo a aperceber-me que, na realidade, o que me convinha era vir para Coimbra. O meu sogro tinha quatro filhas e, com o negócio do peixinho dele, conseguiu encaminhar três com cursos superiores. Por conseguinte, tinha as filhas bem orientadas só a mais velha, a Maria do Céu, a minha mulher, é que estava mais desamparada. Então, um dia o meu sogro falou com o senhor Abel da possibilidade de eu vir para aqui, para o café, para ver se arranjava qualquer coisa. Disse-lhe que eu tinha vontade e etc. Ao senhor Abel a ideia não teria agradado muito. “Como é que eu vou dar trabalho a uma pessoa sem experiência?”, terá pensado.


COM UM PÉ NO ARCÁDIA…

E eu vim para cá. Vim para cá em 1950. O café estava a trabalhar bem, embora com alguns problemas económicos. E a coisa começa a trabalhar e tal e há que estabelecer-se ordenado ao “Zé” Maria. As coisas não são fáceis, o que é que se há-de arranjar o que é que se não há-de arranjar mas o senhor Abel não teria aceitado a situação. Então disse-me: “você deveria comprar a posição ao seu sogro!”. E eu disse: ó senhor Abel nem tenho dinheiro nem tão pouco –mas aqui entra uma parte interessante da minha vida. Efectivamente esta foi espectacular. Não tinha dinheiro e também não ia propor isso ao meu sogro. Então ele disse: “então compre a minha posição!”. E eu pergunto, então quanto é que o senhor Abel quer? “350 contos!” -1750 euros. E 330 a dinheiro, a pronto! Eu vou para a Mealhada, e sempre a pensar nesta proposta. Um dia andava a passear no jardim da Mealhada com o senhor António Simões, que era enfermeiro e o filho era do meu tempo. Contei-lhe a história e ele disse: “e você não arranja dinheiro para isso?”. E eu respondi: ó senhor Simões, então onde vou arranjar dinheiro? E retorna-me o Simões: “20 contos já você pode contar e é um princípio!”. Ele conhecia-me lá do negócio dos vinhos. Para além disso ele tinha muita estima pelo meu sogro, que tinha começado no negócio do peixe sem nada. E diz o Simões para mim: “vá ao Messias!”. Eu fiquei a pensar naquilo. Indaguei onde estava o senhor Messias. O senhor Messias estava a fazer férias em Monfortinho. O meu sogro mandava reparar a carrinha de caixa-aberta no Barbosa, um homem que tinha uma oficina de automóveis. O que é curioso, e tem a sua piada, é que fomos lá pedir um automóvel emprestado e fomos para Monfortinho ter com o senhor Messias. Quando este nos viu lá interrogou: “ó Gaitas, ó Gaitas, o que é que você faz por aqui?”. E o meu sogro explicou o que nos levou lá. Então o senhor Messias, que até aí praticamente me ignorou, virou-se para mim e interrogou: “e tu queres trabalhar?”. Fez-me esta pergunta. Eu respondi que queria sim. Muito! Então ele disse: “vai para a Mealhada e amanhã vai ao escritório do Sias –ele tratava o filho por Sias-, que ele empresta-te o dinheiro. Depois, quando eu for daqui, digo-te como é que me vais pagar. Eu e o meu pai regressámos com muita alegria à nossa terra.
Há também uma coisa curiosa. Naquele tempo não havia as máquinas de café que há hoje. Só havia café de saco na Brasileira, que era ao lado e já estava aberta. Não havia outro tipo de café. Mais tarde é que apareceram as máquinas “La Pavoni”. Eram grandes máquinas! Nesse tempo quem queria beber um bom café tinha, obrigatoriamente, de ir ao café –e também não havia televisão. Por conseguinte, à noite, caía tudo nos cafés. Aquilo era um movimento interessante. Então tentámos ser diferentes da Brasileira. Tínhamos outro tipo de serviço.


O ADOLFO MUDA DE POISO


Até aí o Miguel Torga, Adolfo Correia da Rocha, era cliente diário da Brasileira. Por curiosidade eu comecei a caçar aos 37 anos, quando já tinha uma condição económica para poder brincar com essas coisas. Então, nessa altura, eu tinha lá no Arcádia um cliente espectacular que era caçador. Um dia fomos caçar para… Pinhel e o Torga foi também. Ele não se sentava muito à mesa. Juntava-se ali junto dos amigos que discutiam “futebóis” e tal! A política era mais na Brasileira. No Arcádia era mais o futebol Na Brasileira eram mais os políticos e gente ligada ao teatro como aquele… (ai, como é que ele se chamava?)… o Paulo Quintela. Isso mesmo! E aquele escritor açoreano… (ai, como é que era o nome dele?)… o Vitorino Nemésio, sim. É verdade! Havia também os irmãos Vilaça. O mais alto, parece-me que era professor, esse ia para o Arcádia juntamente com a esposa. O outro ia para a Brasileira. O professor Queiró, o Torga e, sei lá, os lentes da Universidade caiam ali todos no Arcádia! O Arcádia tinha outras condições, era maiorzinho qualquer coisa, e então o “Zé” Maria tinha uma clientela muito boa. Então, voltando à caçada com o Torga, diz-me ele: “então que idade tem o senhor?”. E eu, ó senhor doutor, 37! E volta ele a interrogar: “ e a sua senhora? Que idade tem?”. Creio que tinha 35 e teria sido o que respondi, imagino. Diz ele: “ah, então o senhor tem vício! Quem deixa uma mulher aos 35 anos na cama e vem para a caça tem vício! (Ahahahahaha!) O Torga foi uma pessoa espectacular! Tive coisas com ele muito interessantes! Eu gostava muito dele. Gostava muito dele! Até já fui visitar a sepultura dele. Um dia perguntei-lhe acerca de um amigo comum: “ó senhor doutor, que impressão tem de fulano assim assim? E ele respondeu: “gosto dele pelos seus defeitos!” (Ahahahahahha) Foi interessante! Um dia, o nosso companheiro de caça, o “Zé” Pereira tínha-nos arranjado uma coutada em Ferreira do Alentejo. Então fui eu, foi o Pedro Messias, neto do senhor Messias, foi um meu cunhado, irmão da minha mulher, Manuel Gaitas que é médico, foi o doutor Manuel Esparteiro, foi o Torga e foi o doutor “Zé” Pereira. Foram dois carros. Por conseguinte, foi uma viagem espectacular porque entretanto estava lá um padre à nossa espera para falar com o Torga. Aquelas coisas todas! O Torga era reconhecidíssimo. O padre ia lá busca-lo a casa todos os domingos. Então era curioso. Cacei muito com o Torga. Muito! Ele tinha saídas do arco-da-velha! Outra que me estou a lembrar, qualquer pessoa chegava junto dele e dizia: “ó senhor doutor, fulano assim assim?!”. E Torga respondia: “ah, isso qualquer caixão serve!”. Queria dizer que o visado era um indivíduo sem dimensão.
Numa outra vez contou-me uma história engraçada. Já agora. Um dia ele estava na igreja de Penedono, acima de Sernancelhe, lá próximo da terra dele, São Martinho de Anta. Entretanto ele entra na igreja e viu uma imagem muito antiga fora do púlpito, sei lá, do século… e que lhe agradava muito, para tentar comprá-la. Anda ali a dar umas voltas, e às tantas ele atreve-se a dirigir ao senhor padre: “o senhor tem ali uma imagem que está fora do púlpito e tal! O padre só respondeu: “É uma santa do século…”. Sabia muito bem o que lá estava! Não disse mais nada| O padre sabia o que tinha lá na igreja. Bem, o Torga vem cá para fora e vai meter gasolina. No tempo em que as bombas tinham dois depósitos, à mão. A malta descarregava cinco litros. Era em fracções de cinco em cinco litros, 10, 15, vinte… está a perceber? Então, como normalmente havia um automóvel de tempos-a-tempos, era um rapazola de 12 ou 14 anos que estava a atender. E às tantas enquanto o rapaz estava a meter a gasolina pergunta o Torga: “olha lá, menino, não há por aqui ninguém que tenha umas coisas antigas, e tal?”. Resposta do rapaz: “nós aqui só compramos!”
Um dia –já o nosso companheiro “Zé” Pereira tinha deixado o mundo dos vivos- fui visitar a sua sepultura e vi lá (no epitáfio):

“Fui dizer-lhe o último adeus,
estava deitado no caixão,
na paz eterna dos justos.
Surpreendentemente revelado,
Nunca nenhum amigo lhe tinha conhecido tão puras e nobres feições.”
(Torga, na despedida do doutor José Pereira)


Como já lhe disse, já fomos visitar a campa do Torga. Fui lá com a minha mulher. Perante aquela imensidão de sepulturas (é um cemitério muito grande) disse: ó Maria do Céu, como é que vamos encontrar aqui o memorial? Olhando em volta, disse ela: “olha ali, é aquela!”. Campa rasa! E está uma torga, uma espécie de giesta –parece-me que a torga é a raiz da giesta, está a perceber?

A FÓRMULA SECRETA…

Ainda voltando ao café, a coisa andou e às tantas o “Zé” Maria… O negócio não era dos melhores, não era famoso. Era um negócio muito miudinho. Era miudinho, tinha muitos empregados, e depois o café… Quem ganhava, de facto, era o torrador. E eu tive um amigo que me ensinou a fazer o lote do café. O torrador é que ganhava dinheiro, porque importava o café, torrava-o, fazia as misturas, nos lotes, e depois ia distribuir. Ora bem, o “Zé” Maria teve uma amigo que trabalhava na “Cafeeira” (marca distribuidora de café), Henrique Ildefonso –é preciso a gente arranjar amigos! Eu tive muitas dificuldades como pode calcular -como tive de arranjar aquela massa que paguei ao Abel- e, por isso mesmo, eu trabalhava com uma casa de Lisboa que me concedia um crédito de 50 contos (250 euros). Isto é, estava lá sempre, em material, dinheiro do homem no valor de 50 contos. Era a Luso-Brasileira. Haver quem nos conceda crédito já é muito bom para nós, sobretudo numa altura que a gente precisa. Mas às tantas o Henrique Ildefonso, que era um bom amigo, falou comigo para eu lhe comprar. Mas eu disse: ó Henrique não vou comprar. Não vou trair, trair o meu fornecedor que sempre me serviu. Agora se o senhor me arranjasse o segredo, o segredo do café… E às tantas eu já estava aprender a fazer a mistura. Ao cabo e ao resto, tanto de aqui, tanto de arábica, tanto de robusta, tanto de São Tomé, tanto de Cabo Verde. Ora aqui está. Eu estava pronto a fazer os lotes… E os cafés também têm anos bons e anos maus, como a produção de qualquer outro produto. Então consegui entrar naquilo e consegui ganhar uns tostõezitos. Então, montei um torrador em Barrô –era uma máquina a lenha. Entrava o café em grão, em cru. Antes fazia as misturas. Tinha um fornozinho que girava –está-me a entender? Depois é que saía o café torrado. Aí é que está o segredo! Eu era o único cá em Coimbra! Ainda pensei em vender aos outros. Ainda fiz umas visitas, mas via os cafés com muitas moscas dentro das montras, está a perceber? Vou agora distribuir um produto destes por aqui? Não!

E DÁ-SE A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS…

Veio o 25 de Abril e eu… Ainda havia uns centavos. Perdemos as ex-colónias e o café deu um trambolhão. Passou de 20 escudos (10 cêntimos) para 300 (1,5 euros), o quilo. Faça as contas! E eu acabei logo com a torrefação. Comecei outra vez a comprar o café em lotes. No dia 25 de Abril estava eu a torrar café em Barrô. Apareceu lá um senhor com uns garrafõezitos de vinho e umas coisas e disse que tinha acontecido isto assim assim.
A vida é assim! Eu nasci em 1927. Em 1927. A sua mãe sabe das dificuldades da minha vida. Ela, coitadita, como a minha mãe, passava até muito mal.Por alturas dos anos de 1950, vivia-se muito mal em Barrô. Viviam da agricultura de subsistência, da leirita. Olhe que me lembro muito bem do seu pai, o Albino. E do seu tio, o Ernesto, ambos já falecidos. Olhe que andavam sempre juntos. Comiam mal. Saiam de casa logo de manhã e, coitados, trabalhavam como moiros de sol a sol. E depois, por força da vida, bebiam um bocadito de mais. Como foi o caso dos seus avós. E o António Quintans, que era seu tio-avô, foi a mesma coisa. O António Quintãns era irmão do seu avô. Tinha uma casinha agrícola muito boa mas foi tudo embora. Foi o vinhito! Foi o vinhito! Havia também o Alberto Quintans, que morava na casa grande ao lado da minha. Havia lá umas famílias que iam vivendo mais ou menos. Tinham os seus rendimentos. Era preciso ir ao médico e cortavam uns pinheiros. Tinham os seus pinhaiszinhos. Veio muita gente de fora trabalhar para eles. Foi a sua mãe, que veio de Várzeas, foi a sua tia, foi o senhor Maurício, foi o senhor Amaro, que veio a ser cantoneiro. Veio o “Zé” Maria, “Peneiras” - que passou a ser o Barbeiro da terra-, como eu lhe chamava. Todos eles vieram para a aldeia em busca de trabalho e por cá ficaram, casando uns com os outros. Havia ali casas com muito valor, como a do Agostinho, por exemplo. É tudo gente com muito valor para o trabalho. Ninguém passava fome. Se faltasse a broa, o azeite, pediam uns aos outros e depois devolviam.
O advogado, doutor Assis Leão, lá de Barrô, era de tal maneira bom que quando… -quem me contou isto foi o Marques da Casa Guimarães, o velhote, que já morreu. Eles eram ali de… (ai, valha-me Deus!)… Lorvão. E eram uns homens do sarro, que retiravam o sarro das pipas –o sedimento, a borra, que o vinho em conservação deixava nas vasilhas- e que servia para fazer o ácido sulfídrico, para fazer pesticidas. Então esse homem, quando eu lhe disse que era de Barrô, exclamou: “ah, então está muito bem orientado! Você teve lá uma pessoa excepcional! Era um homem de prestígio, notabilíssimo. Ele e o Emídio Navarro relançaram as Águas de Luso –por volta de 1907."

AS SAUDADES QUE LÁ VÃO…

Tenho e não tenho saudades do que lá vai. As pessoas do meu tempo começam a desaparecer. Tenho saudades dos clientes do Arcádia que diziam: “o “Zé” Maria a encher-se de dinheiro à nossa custa! E mais não sei quantos! Era uma provocação! Isso é que me agradava! Arreliavam-me! Assim como o “Zé” Pereira. Metiam-se comigo a valer, não é?! Perdeu-se isso!”


O ARCÁDIA ABERTO? TALVEZ, MAS…

Interrogo o Senhor José Maria. Como já deve saber a Brazileira vai abrir dentro de alguns dias. É do Lúcio Borges, um pasteleiro da Baixa de reconhecido mérito. Gostava de voltar a ver o velhinho Arcádia outra vez a funcionar?

Responde “Zé” Maria: “gostava sim! Gostava de ver o meu café Arcádia outra vez aberto. Mas não é possível! O tempo não volta atrás! As rendas que os senhores lá estão a pagar não há nenhum café que apresente rentabilidade para isso.”


O VALOR DO NOME DO “ZÉ” MARIA DO ARCÁDIA…

Agora sou eu a falar, o narrador, o Rodrigues, o Quintans, como me tratava carinhosamente o Senhor José Maria. Como é de adivinhar, e a determinado ponto do texto sobressai, sou filho de gente muito humilde.
Estávamos em 1982, em plena crise bancária e com intervenção directa do FMI em Portugal. Eu trabalhava no comércio, numa loja daqui, da Baixa, há já nove anos e desde 1973. Em princípio desse ano, o lojista fez-me uma sacanice da qual só me deixou uma saída: agarrar no casaco e partir porta-fora. Sem pensar nas consequências, cego de raiva, foi o que fiz. Como retaliação, o comerciante não me pagou, nem sequer o mês em curso. Como a sorte premeia os audazes, passados dois dias estava a trabalhar no Café Trianon –do Luís e do Daniel –este era já o meu melhor amigo. Tínhamos trabalhado todos na Praça da República. Eu no Café Mandarim. O Luís no Académico. E o Daniel no Tropical. Eu tinha 25 anos. Ora o facto de, sem contar, ter ido trabalhar para a hotelaria novamente foi extraordinário. Vi que ali, no servir cafés e sandes sem grande investimento nos activos, estava o futuro. Estive lá uns meses a laborar e a aprender. Mas, mesmo sem ter um tostão, sentia um formigueiro intenso para me estabelecer por conta própria. Queria proporcionar à minha família, aos meus filhos, um bem-estar que nunca tive.
Comecei a ler no jornal no então único diário na cidade, no Diário de Coimbra, os trespasses. Em Julho desse mesmo ano li o anúncio de cedência de quotas do Café Sé Velha, no Largo da Sé Velha. Enfiei o melhor fato e apresentei-me ao proprietário com ares de rico. Numa conversa para o impressionar, o hoteleiro pediu 5000 contos por duas quotas. Ali na hora, sem tostão, fiz a proposta mais incrível que alguma vez um teso pode fazer. Disse-lhe: imagine que eu lhe oferecia 4500 contos. Estamos em Julho. Na assinatura do contrato-promessa dava-lhe a quantia de 500 contos. Como tenho uns dinheiros a prazo que se vencem em Novembro, faríamos nessa altura a escritura e eu entregava-lhe mais mil contos. E os restantes três mil contos seriam pagos em 5 anos. O senhor quer pensar nesta minha proposta?
No dia seguinte estava a telefonar-me para o café Trianon a informar que aceitava. E aqui começa a saga incrível para arranjar dinheiro a toda a pressa. Perante o que achei um bom negócio, convidei um meu cunhado para meu sócio. Ele aceitou. Então, para assinar o contrato, precisávamos de 500 contos. Ficou combinado que cada um de nós iria tentar arranjar 250 contos. Eu parti para Barrô. Tinha duas pessoas em mente. Um o senhor Matos que, me conhecia desde bebé e perante a minha vontade de trabalhar e certamente me comparava com ele quando mais novo, volta e meia me dizia: “tu és danado rapaz! Há-des ir longe! Se precisares vens ter comigo!”. Tantas vezes disse aquilo que eu achava que tinha ali dinheiro certo para um futuro negócio. Mas as pancadas estavam à espreita para me caírem na cabeça. A primeira saiu logo do meu pai, quando lhe pedi para me acompanhar a solicitar o empréstimo. Sem anestesia geral, o meu progenitor disse peremptoriamente: “ai não vou não! Estavas muito bem empregado lá na loja. Saíste? O problema é teu!”. E lá fui eu pedir 250 contos ao senhor Matos. Com uma esperança bem gorda e uma lábia assente de que era um bom negócio que me esperava, tentei convencer o casal Matos, o Joaquim e a Maria do Céu e que ainda eram primos afastados do meu pai. E vem o segundo cachaço. Diz o Matos: “ó dianho! Vens em má altura, Tonito! Era assim tratado na aldeia. Se tivesses vindo ontem… É que emprestei uma pipa de massa ali para o Manel, lá de cima, não sei se estás a ver?!”
Claro que eu via que estava a ser enrolado com uma pinta danada, mas não desarmei e argumentei: bom, como não pode ceder-me 250 contos, ao menos empreste-me 100. Preciso mesmo, senhor Matos. Há tantos anos que me anda a prometer…”
Preso à promessa ou não, afastando-se por momentos, reapareceu com um monte de notas na mão e disse: “tenho aqui 80 contos. Daqui a um mês vens buscar os outros 20. Agora passas-me já um cheque de 100 contos. O juro é de 20 por cento ao ano”. Estava já a sair quando o meu pai apareceu, provavelmente com um peso imenso na consciência de não me ter ajudado quando eu mais precisava –acho que, enquanto viveu, nunca lhe perdoei isto. Na hora da sua morte tudo ficou saldado. Absolvi-o de tudo.
Terceira bofetada. Dali fui para casa de um meu tio, que também me conhecia bem e sabia das minhas qualidades de entrega ao trabalho. Lá lhe contei a história, de que tinha ficado com um café e precisava urgentemente de 170 contos para assinar o contrato-promessa. Durante duas horas –lembro-me como se fosse hoje- em palavras duras mandou-me para as pedras da calçada. Em frases do género: “como é que pagas? Tu não tens nada! E se o negócio corre mal, como é?”. E eu argumentava conforme podia de que o negócio era garantido. E ele tornava a investir: “é muito dinheiro! Sabes que o dinheiro é o sangue da vida? Sabes?”. Até que, sem ter pensado em nada, atirei: tio, o único bem que possuo é o carro mini que tenho ali fora. Custou 50 contos. Empreste-me 100 contos, ao menos. Deixo-lho aí até lhe pagar. Se não liquidar este débito você só perde metade. Toda esta conversa foi passada em frente à esposa, a minha tia Natividade. Durante todo aquele diálogo, ela nunca abriu a boca até à cena do carro. E aqui surgiu a intervenção do meu anjinho da Guarda. De repente, ela levanta-se e, dirigindo-se ao marido, ordena: “olha lá, não achas que já chega de humilhar o rapaz? Fazes o favor de passar um cheque imediatamente de 100 contos?”. Como cachorrinho de rabo entre as pernas, o meu tio levantou-se e começou a passar o cheque. A minha tia ainda disse: “vai à tua vida, rapaz! Leva o carro, que vais precisar dele, e boa sorte!”. Ficou assente que o juro seria de 20 por cento ao ano.
Venho para Coimbra com apenas uma parte. Só tinha conseguido 180 contos. E dá-se novamente a intervenção do meu guardião angelical. Mal estava a entrar em casa, encontrei o então meu sogro Américo –hoje já falecido, onde quer que ele esteja um hino a tudo quanto de importante foi para mim. Sem que eu dissesse nada, ele interrogou: “conseguiste o dinheiro?”. Eu expliquei que estava enrascado. Ainda faltavam 70 contos. Ele disse: “não te preocupes. Eu vou busca-los!”. Passado um bocado entregávamos em mão. Só anos mais tarde vim a saber de que os tinha ido pedir emprestado ao talho, ali próximo.
No dia seguinte estávamos a assinar o contrato-promessa no escritório do advogado Costa Hall, na Rua Dr. Manuel Rodrigues, aqui na cidade, e recebemos as chaves do mítico café Sé Velha, e para mim um sonho prestes a realizar-se.
Juntamente com o meu cunhado, vou receber a próxima cacetada. Como precisava de 1000 contos passados quatro meses para fazer a escritura, no dia seguinte estava no Banco Pinto & Souto Mayor. Este banco tinha uma dependência que funcionava numa garagem na Rua do Brasil. Quando entrámos às 9h00 da manhã já havia uma fila de cerca de umas 20 pessoas para pedir crédito. Há um pormenor curioso, neste ano de 1982, com o FMI a impor as suas regras, o juro bancário era de 38 por cento e eram postecipados. Quer dizer que quem pedisse, por exemplo, 1000 contos só levava para casa 620. A concessão de crédito era muito restritiva. Quando fui atendido por volta das 12h15, mais de dois terços dos rogatórios não tinham conseguido nada. Entrei e lá tentei explicar o negócio ao funcionário bancário. Volta e meia ele olhava para o relógio –nessa altura os bancos encerravam para almoço ao meio dia e meia-hora. Então, sempre a despachar, o homem interrogava: “o senhor tem contas bancárias a prazo? E à ordem? Tem propriedades? Tem outros rendimentos?”. Perante a minha negação, foi conclusivo: “nada feito!”
Dali fui para outros bancos na cidade e, na mesma lengalenga, tentava explicar que era bom negócio. Nada feito. O último que me restava era o BES, na altura, Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, na Rua Visconde da Luz. Fui falar com o gerente, era o senhor Silvano, um homem que conhecia de vista daqui da Baixa -espero que ainda esteja de boa saúde. Na época, era boa pessoa e muito cristão. Então, perante o meu discurso já solto pelas experiências anteriores, mais uma vez repetiu que, em face das minhas garantias, não havia qualquer hipótese. Foi aqui que eu, atirando a última seta da esperança, disse: senhor Silvano, sou da terra do “Zé” Maria do Arcádia. Se eu lá fosse pedir para ser meu avalista, a sua decisão seria a mesma? Na minha frente operou-se um milagre. Ele interrogou: “você é da terá do “Zé” Maria? E tem confiança com ele?”. Eu disse que sim, que o “Zé” Maria me conhecia desde garoto. Então o Silvano profere a frase que, para mim, foi a boia de salvação da minha vida: “você vai fazer o seguinte. Estamos em Julho. Você tem de fazer a escritura e precisa dos 1000 contos em Novembro, certo? Então vai abrir o café e trabalhe, trabalhe e junte o mais que puder. Venha cá uns dias antes e, nessa altura, vai falar com o “Zé” Maria!”

Assim fiz. Trabalhei noite e dia e, por certo e novamente por intervenção do meu Anjinho da Guarda, por sorte, por parte dos vendedores, houve necessidade de prorrogar o prazo da escritura. Quando esta se realizou já tinha o dinheiro. E se eu não tivesse invocado o nome do “Zé” Maria, teria sido assim?


PALAVRAS QUE MARCAM…

Por volta de 1990 consegui o registo do Totoloto lá para o meu café Sé Velha. O trabalhar com os jogos da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa era muito importante para um pequeno café. É como manter preso o cliente, pelo vício do jogo, em cordão invisível ao estabelecimento. E atrás de uma aposta sempre ia um café, uma cerveja, etc. Hoje continua a ser importante mas diversificou-se muito mais e, de certo modo, liberalizou-se o jogo. Nessa altura, para conseguir a patente, a declaração de autorização, tinha de se ir de Seca a Meca. Era preciso não termos tido até aí qualquer problema com incumprimentos bancários ou outros. Através da minha escrita, volta e meia lá escrevia uma carta à então provedora da Santa Casa, a contar da necessidade de um ponto de jogos para a Sé Velha e tal e tal, até que passados uns anos lá me concederam a autorização. Mas, se a memória não me falha, demorou cerca de cinco anos.

Então a central de recepção dos boletins das apostas era no Café Arcádia, na cave que dá saída para a Rua dos Gatos. Foi a partir daí que se estabeleceu entre mim e o senhor José Maria alguma convivência. Quando me via –que aliás, creio que era assim para todos-, numa recepção apoteótica, como se, imaginariamente, estivesse a abrir os braços no jeito do Cristo Rei, proclamava: “olha o Rodrigues! Então, então?! Como é que vão as coisas lá por cima, pela Sé Velha?”. E eu, meio titubeante lá respondia que iam indo. Não tão bem como as coisas dele. Porque o “Zé” Maria, nos últimos anos do seu café, praticamente, só lá ia à sexta-feira, dia de recepção do Totoloto. Tinha dois gerentes, o senhor Machado e o senhor João, e a coisa rolava sobre rodas. Mas fazia-me alguma espécie aquele desligamento dele e um dia, perdendo a vergonha, interroguei: diga-me lá, senhor José Maria, como é que o senhor consegue deixar isto entregue aos empregados e só cá vem de vez em quando? Respondeu o velho hoteleiro, sem se dar por atacado: “é assim, ó Rodrigues! Se eu estiver aqui todos os dias ganho 100 por cento, mas morro mais cedo. Se não estiver sempre presente ganho 80, mas vivo muito mais. Já sei que vinte por cento vão para as percas mas, perante o meu descanso, interessa alguma coisa? Diga-me lá, o que é melhor? É estar ou não estar?”

2 comentários:

Nuno disse...

Grande Homem o Sr. José Maria, meu Tio Avô!
Descansa em paz!

Nuno disse...

Grande Homem, o Sr. José Maria, meu Tio Avô!
Que descanse em Paz.