quarta-feira, 12 de março de 2014

PARTIU O "ZÉ" MARIA, DO ARCÁDIA"



 Foi a enterrar hoje, no cemitério de Luso, José Maria Cerveira. Para a maioria este nome comum nada dirá. Mas se eu escrever que faleceu o “Zé” Maria, do Arcádia”, tenho a certeza, metade da Baixa fará um segundo olhar sobre a notícia. Conheci bem o “Zé” Maria”. Eu sou, ele foi, da mesma povoação que durante décadas nos viu por lá: Barrô, do Luso. Curiosamente, na nossa terra, era tratado distintamente por “Senhor José Maria”. Noutros tempos, nas aldeias, quando o estatuto era notado e implícito para quem se distinguia do comum, esta era a forma manifestada a quem, para além do sucesso, era reconhecido valor, respeito e afeição. Senhor de uma educação esmerada e de uma visão alargada sobre o humano, imediatamente fazia o retrato psicológico de quem estava à sua frente. Na sua calma natural, sem nunca levantar a voz, era um “gentleman” na forma como falava para qualquer um. Apesar de o ter conhecido bem e guardar dele uma boa memória, e lamentar a sua partida apresentando públicas condolências à família, vou dar voz a quem o conheceu melhor ainda, José António Machado:
“Comecei a trabalhar no Café Arcádia, Na Rua Ferreira Borges, em 1976. Durante quase um quarto de século fui seu empregado. Foi como um pai para mim. Tive sempre um bom relacionamento com ele. Sempre que precisei emprestou-me dinheiro. Materialmente, tudo o que tenho foi com a ajuda do Senhor José Maria. Era um homem de 5 estrelas! Ligava a todos por igual. Tanto lhe fazia que fosse um pobre cigano como um rico capitalista. Enquanto pessoas, mereciam o mesmo respeito. Ele nunca fazia distinções. Era bom que este país seguisse o seu exemplo no trato e na equidade. No café Arcádia chegámos a ser 19 funcionários, entre homens e mulheres. Tinha uma forma incrível de nos avaliar. Quando fui pedir-lhe trabalho, em 1976, já ele tinha uma grande lista de candidatos ao lugar. Eram 5h30 da madrugada quando falámos. Eu viera no comboio correio da manhã, desde a Aguim. Estava ele a preparar as coisas para abrir o café –nessa altura o Arcádia era já um ex-libris na Lusa Atenas. Aqui parava a fina flor da cidade. Então admirou-se de eu vir tão cedo. Respondi-lhe que estava habituado a erguer-me ainda a noite estava a sonhar. Deu-me trabalho e desabafou mais tarde que fora por esta minha qualidade que me escolhera. “Quem dorme muito não faz andar o moinho a tempo e horas”, dissera.
Tive sempre por ele uma consideração fora de série. Lembro-me, chegaram a oferecer-me três vezes mais ordenado do que lá ganhava, mas eu respondia que não se cospe no prato onde comemos a sopa. Só saí do Arcádia aquando do seu encerramento, em final da década de 1990. Indemnizou todos e não ficou a dever nada a ninguém. Era muito escrupuloso nas contas. O senhor José Maria foi um dos históricos da Baixa. Já poucos restam do seu tempo. Fez muito bem a talvez mais de metade dos comerciantes da Zona Histórica. Gostava muito de dinheiro, era muito poupado. E sobretudo muito justo. Gostava de atribuir a cada um o que é seu. E se via que o candidato ao empréstimo detinha qualidades emprestava sem receio. Mereceu tudo o que ganhou. Foi uma honra tê-lo conhecido, sendo seu empregado, senhor José Maria. Descanse em paz, meu amigo!”


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