Foi a enterrar hoje, no cemitério de Luso, José Maria
Cerveira. Para a maioria este nome comum nada dirá. Mas se eu escrever que
faleceu o “Zé” Maria, do Arcádia”,
tenho a certeza, metade da Baixa fará um segundo olhar sobre a notícia. Conheci
bem o “Zé” Maria”. Eu sou, ele foi,
da mesma povoação que durante décadas nos viu por lá: Barrô, do Luso. Curiosamente,
na nossa terra, era tratado distintamente por “Senhor José Maria”. Noutros tempos, nas aldeias, quando o estatuto
era notado e implícito para quem se distinguia do comum, esta era a forma
manifestada a quem, para além do sucesso, era reconhecido valor, respeito e
afeição. Senhor de uma educação esmerada e de uma visão alargada sobre o humano,
imediatamente fazia o retrato psicológico de quem estava à sua frente. Na sua
calma natural, sem nunca levantar a voz, era um “gentleman” na forma como falava para qualquer um. Apesar de o ter
conhecido bem e guardar dele uma boa memória, e lamentar a sua partida
apresentando públicas condolências à família, vou dar voz a quem o conheceu
melhor ainda, José António Machado:
“Comecei a trabalhar no Café Arcádia, Na Rua
Ferreira Borges, em 1976. Durante quase um quarto de século fui seu empregado.
Foi como um pai para mim. Tive sempre um bom relacionamento com ele. Sempre que
precisei emprestou-me dinheiro. Materialmente, tudo o que tenho foi com a ajuda
do Senhor José Maria. Era um homem de 5 estrelas! Ligava a todos por igual.
Tanto lhe fazia que fosse um pobre cigano como um rico capitalista. Enquanto
pessoas, mereciam o mesmo respeito. Ele nunca fazia distinções. Era bom que
este país seguisse o seu exemplo no trato e na equidade. No café Arcádia
chegámos a ser 19 funcionários, entre homens e mulheres. Tinha uma forma incrível
de nos avaliar. Quando fui pedir-lhe trabalho, em 1976, já ele tinha uma grande
lista de candidatos ao lugar. Eram 5h30 da madrugada quando falámos. Eu viera
no comboio correio da manhã, desde a Aguim. Estava ele a preparar as coisas
para abrir o café –nessa altura o Arcádia era já um ex-libris na Lusa Atenas. Aqui
parava a fina flor da cidade. Então admirou-se de eu vir tão cedo. Respondi-lhe
que estava habituado a erguer-me ainda a noite estava a sonhar. Deu-me trabalho
e desabafou mais tarde que fora por esta minha qualidade que me escolhera. “Quem
dorme muito não faz andar o moinho a tempo e horas”, dissera.
Tive sempre por ele uma consideração fora de série. Lembro-me, chegaram
a oferecer-me três vezes mais ordenado do que lá ganhava, mas eu respondia que
não se cospe no prato onde comemos a sopa. Só saí do Arcádia aquando do seu
encerramento, em final da década de 1990. Indemnizou todos e não ficou a dever
nada a ninguém. Era muito escrupuloso nas contas. O senhor José Maria foi um
dos históricos da Baixa. Já poucos restam do seu tempo. Fez muito bem a talvez
mais de metade dos comerciantes da Zona Histórica. Gostava muito de dinheiro, era
muito poupado. E sobretudo muito justo. Gostava de atribuir a cada um o que é
seu. E se via que o candidato ao empréstimo detinha qualidades emprestava sem
receio. Mereceu tudo o que ganhou. Foi uma honra tê-lo conhecido, sendo seu
empregado, senhor José Maria. Descanse em paz, meu amigo!”
TEXTOS RELACIONADOS
"E para a Baixa não vai nada?"
"Histórias da minha aldeia: o carro da minha fantasia"
"Histórias da minha aldeia: o onzeiro"
"Este livro que vos deixo -um complemento para a história"
"Um comentário recebido sobre..."
"Partiu o "Zé" Cabeleireiro"
TEXTOS RELACIONADOS
"E para a Baixa não vai nada?"
"Histórias da minha aldeia: o carro da minha fantasia"
"Histórias da minha aldeia: o onzeiro"
"Este livro que vos deixo -um complemento para a história"
"Um comentário recebido sobre..."
"Partiu o "Zé" Cabeleireiro"
Sem comentários:
Enviar um comentário