sábado, 29 de setembro de 2018

EDITORIAL: O MELHOR QUE EXISTE ENTRE NÓS SÃO AS PESSOAS






Em duas visitas de cortesia e companheirismo a dois conhecidos de longa data com idade de 90 anos, esta semana estive em duas situações que me tocaram profundamente. Ainda que parecidas e  de efeitos completamente antagónicos, com um resultado completamente diferenciado para os intervenientes, redundam em lição.
Um deles, ainda a locomover-se razoavelmente e perfeitamente lúcido, encontrei-o muito bem acomodado num andar de luxo ali para os lados de Celas. Segundo as suas palavras, os seus filhos, no tocante a apoio domiciliário, não deixam que nada lhe falte. Se eu não soubesse e não conhecesse bem o seu feitio e forma de estar na sua longa vida, nos seus lados peculiares, azedo, severo com os outros, egoísta, intolerante, poderia ser levado a pensar que o meu amigo estaria muito feliz. Num caso completamente anómalo, basta eu relembrar que, num longo casamento de mais de 60 anos, entre ele a sua esposa ainda viva, não existe qualquer convivência há cerca de trinta e cinco anos. Para complementar um quadro de existencialismo, o meu amigo é ateu.
Algumas vezes com as lágrimas a caírem pelo rosto marcado pelo tempo, o meu chegado de longa data, enquanto desenrolava o novelo de algumas histórias, que eu já conhecia, mostrava estar profundamente infeliz, diria até, eminentemente deprimido. Ao longo de uma hora, várias vezes repetiu: “estou sozinho, não tenho alguém que seja, da minha idade ou mais novo, para conversar. Não falo com ninguém! Os meus passatempos são a leitura e ver televisão. Como não saio de casa, deixei de conversar consigo, com a “doutorazinha” da farmácia, com o dono da livraria onde comprava livros. Não preciso nada de bens materiais, preciso é de humanidade, de relações humanas, de uma simples conversa como esta que estou a ter consigo. Nunca pensei em chegar a esta altura da minha existência e encontrar-me tão só!
Outro caso, foi o que contei ontem aqui, o aniversário de Cândido Carvalho, comerciante da Baixa, fundador da Loja das Meias em Coimbra. Ainda com boa agilidade física e mental, o profissional de balcão e empresário está para as curvas e contracurvas que o futuro o presentear.
No oposto ao que narro em cima, na introdução, encontrei o senhor Carvalho rodeado de quatro amigos com idades próximas a comemorar os seus 90 anos num ambiente de completa alegria e muita satisfação por estar vivo.
Para melhor percepcionarmos as diferenças, vou descrever um pouco do que conheço do comerciante da Baixa. Relembro, há uns anos, por volta de 2010, Vitália Ferreira, uma septuagenária, a viver da sua parca reforma, moradora na Rua Padre António Vieira, encetou uma guerra contra o barulho ensurdecedor de um bar nos jardins da Associação Académica. A determinado ponto, numa entrevista a um jornal diário, não medindo bem as palavras, acabou condenada por difamação em cerca de 1500 euros. Sem dinheiro para cumprir a obrigação, acabou arrestada. Um amigo dela, condoído com a sua situação, convidou-me para, na sua rua - uma vez que a luta era de todos os vizinhos -, fazermos um peditório. Com extrema dificuldade fizemos a campanha de angariação de fundos e conseguimos menos de metade da verba pretendida. Para além disso, na parte que me tocava, escrevi e publicitei um apelo. Ora é aqui que o senhor Carvalho se distingue da maioria. Por sua iniciativa, veio ter comigo para me entregar uma nota de 50 euros. Declinei receber, mas prometi mandar à sua loja a dona Vitália, a quem o benemérito doou o prometido.
Ontem, durante o pouco tempo que permaneci à conversa no restaurante, deu para me aperceber da recorrência constante ao bem-fazer, à amizade, que é o sangue que deve irrigar as veias do relacionamento humano, à preocupação em ajudar quem precisa, à partilha. Naquele encontro os princípios da Igreja Católica Romana foram marcantes para pressentir a fé viva do meu amigo Carvalho.
Para mim, um pobre pecador, que me considero agnóstico, que, não sendo bafejado com a luz e a virtude de acreditar no transcendente, tento aprender todos os dias com quadros sociais que se me deparam, dá para pensar se o apoio espiritual na velhice, o reconforto da religião não será um suporte para o peso enorme dos anos. Por outro lado, o dar, o dar-se, o estar disponível para os outros, num tempo em que  sobra tempo mas parece não termos tempo para quem quer que seja, não será o tónico anímico que nos fortalece a alma?
Como uma lição existencial sobre o individualismo, só recebe quem dá. A natureza, ou Deus para quem acreditar, não facilita e parece atribuir a cada um apenas o que deu ao longo da sua vida em que se relacionou com outros. E a felicidade, enquanto sensação de bem-estar e contentamento, entre quem nos circunda, é o conjunto das duas premissas.
Perante este enorme “milagre” que é a vida humana, se estivermos dispostos a isso, todos os dias aprendemos.
Valerá a pena pensar nisto?

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