Em
duas visitas de cortesia e companheirismo a dois conhecidos de longa data com idade de
90 anos,
esta
semana estive em duas situações que me tocaram profundamente. Ainda que parecidas e de
efeitos completamente antagónicos, com um resultado completamente diferenciado para os
intervenientes, redundam em lição.
Um deles,
ainda a locomover-se razoavelmente e
perfeitamente lúcido,
encontrei-o muito
bem acomodado num andar de luxo ali para os lados de Celas. Segundo
as suas palavras, os seus filhos, no tocante a apoio domiciliário,
não deixam que nada lhe falte. Se eu não soubesse e não conhecesse
bem o seu feitio e forma de estar na sua longa vida, nos seus lados
peculiares, azedo, severo com os outros, egoísta, intolerante,
poderia ser
levado a pensar
que o meu amigo estaria
muito feliz. Num caso completamente anómalo, basta eu relembrar que,
num longo casamento de mais de 60 anos, entre ele a sua esposa ainda
viva, não existe qualquer convivência há cerca de trinta e cinco
anos. Para complementar um quadro de existencialismo, o meu amigo é
ateu.
Algumas
vezes com as lágrimas a caírem pelo rosto marcado pelo tempo, o meu
chegado de longa data, enquanto
desenrolava o novelo de algumas histórias, que eu já conhecia,
mostrava
estar
profundamente infeliz,
diria até, eminentemente deprimido. Ao longo de uma hora, várias
vezes repetiu: “estou
sozinho, não tenho alguém que seja, da minha idade ou mais novo,
para conversar. Não falo com ninguém! Os
meus passatempos são a leitura e ver televisão. Como
não saio de casa, deixei de conversar consigo, com a “doutorazinha”
da farmácia, com o dono da livraria onde comprava livros. Não
preciso nada de bens materiais, preciso é de humanidade, de relações
humanas, de uma
simples conversa como esta que estou a ter consigo. Nunca pensei em
chegar a esta altura da minha existência e encontrar-me tão só!”
Outro
caso, foi o que contei ontem aqui, o aniversário de Cândido
Carvalho, comerciante da Baixa, fundador da Loja das Meias em
Coimbra. Ainda
com boa agilidade física e mental, o
profissional de balcão e empresário
está para as curvas e contracurvas
que o futuro o presentear.
No
oposto ao que narro em cima, na
introdução, encontrei
o senhor Carvalho rodeado de quatro amigos com idades próximas a
comemorar os seus 90 anos num ambiente de completa alegria
e muita satisfação por estar vivo.
Para
melhor percepcionarmos as diferenças, vou descrever um pouco do que
conheço do comerciante da
Baixa.
Relembro, há
uns anos, por volta de 2010, Vitália Ferreira, uma septuagenária, a
viver da sua parca reforma,
moradora na
Rua Padre António Vieira, encetou uma guerra contra o barulho
ensurdecedor de um bar nos jardins da Associação Académica. A
determinado ponto, numa entrevista a um jornal diário, não medindo
bem as palavras, acabou
condenada por difamação em cerca de 1500 euros. Sem dinheiro para
cumprir a obrigação, acabou arrestada. Um amigo dela, condoído com a sua situação, convidou-me para, na sua rua -
uma vez que a luta era de todos os vizinhos -, fazermos um peditório.
Com
extrema dificuldade fizemos a campanha de angariação de fundos e
conseguimos
menos de metade da verba pretendida. Para
além disso, na
parte que me tocava, escrevi e
publicitei
um apelo. Ora
é aqui que o senhor Carvalho se distingue da maioria. Por
sua iniciativa, veio
ter comigo para me entregar uma nota de 50 euros. Declinei receber,
mas prometi mandar à sua loja a dona Vitália, a quem o benemérito
doou o prometido.
Ontem,
durante o pouco tempo que permaneci à conversa no restaurante, deu
para me aperceber da
recorrência constante
ao bem-fazer, à amizade, que
é o sangue que deve irrigar as veias do relacionamento humano,
à
preocupação em ajudar quem precisa, à
partilha. Naquele encontro os princípios da Igreja Católica Romana foram marcantes
para pressentir
a fé viva do meu amigo Carvalho.
Para
mim, um pobre pecador, que me considero agnóstico, que, não sendo bafejado com a luz e a virtude de acreditar no transcendente, tento aprender todos os dias com quadros sociais que se me deparam,
dá
para pensar se o apoio espiritual na velhice, o
reconforto
da religião não será um suporte para o peso enorme dos anos. Por
outro lado, o dar, o dar-se, o estar disponível para os outros, num
tempo em que sobra tempo mas parece não termos tempo para quem quer
que seja, não
será o tónico anímico que nos
fortalece
a alma?
Como
uma lição existencial sobre o individualismo,
só recebe quem dá. A
natureza, ou Deus para quem acreditar, não facilita e parece
atribuir a cada um apenas o que deu ao longo da sua vida em que se
relacionou com outros. E
a felicidade, enquanto
sensação de bem-estar e contentamento,
entre quem nos circunda, é
o conjunto das
duas
premissas.
Perante
este enorme “milagre”
que é a vida humana, se estivermos dispostos a isso, todos os dias
aprendemos.
Valerá
a pena pensar nisto?
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