“Com
muitas pessoas a terem como único rendimento o RSI,
Rendimento
Social de Inserção, há na Baixa imensos
locados
sem água canalizada e sem luz eléctrica. Sem que
nada
se faça, estamos a fabricar um barril de pólvora social.”
Hoje
é o dia 14 de Julho de 2018. Segundo a Wikipédia, esta mesma data,
mas de 1789, ficou assinalado na história como o início da
Revolução Francesa. Os parisienses tomaram a Bastilha. Foram presos
os representantes do regime monárquico e libertados sete
prisioneiros políticos.
Hoje
extingue-se na Baixa uma das marcas mais importantes dos últimos
quarenta anos. A seu pedido não vou identificar para já.
Alegadamente, mesmo no fim de um percurso de grande relevo comercial
na história da cidade, o comerciante vai tentar levar a marca para
outro lugar porque esta já não dá, segundo as suas palavras
carregadas de emoção e emolduradas com as lágrimas a correrem pelo
rosto marcado pelo tempo.
Pela
sua partida, o nosso bairro inevitavelmente vai ficar mais pobre. A
partir de hoje, o pequeno supermercado fica com menos fregueses. O
pequeno restaurante, onde almoçavam todos os dias, vai ficar com
várias cadeiras vazias. O café, onde tomavam a bica diariamente e
às vezes uma cerveja com tremoços, vai vender menos . O barbeiro
masculino vai perder mais um cliente, a somar a outros tantos que já
lá vão; a cabeleireira, olhando de dentro para fora e fazendo
contas à vida, vê sumir mais um cliente. O dono do quiosque da
esquina, preocupado já com a razia que grassa, vê desaparecer mais
um comprador de jornais.
Nós,
aqueles que vão ficando na fila à espera de partirem também, vemos
irem pessoas que gostávamos muito, camaradas confiáveis onde a
amizade, como artérias sanguíneas, eram o fio de vida que nos
conduziam diariamente para um fim anunciado mas esquecido.
Eles,
os comerciantes, marido e mulher, depois de quatro décadas a
percorrer o mesmo caminho numa rotina que se transformou vital, na
segunda-feira, depois de uma noite mal dormida, vão acordar e, ao
lembrar-se que já não vão para o mesmo sítio de sempre, vão
receber um ilusório murro no estômago que, apesar de ser
psicológico, vai doer muito mais. Com o pranto a correr pelas
cercanias do rosto, vão abraçar-se e, em perguntas de retórica,
vão interrogar que mal fizeram para merecer uma sorte assim.
Adivinha-se,
porque fazem parte de uma geração muito sacrificada que passou
muito para chegar até aqui, que vão resistir ao sentimento de
falhanço que, num roer sem explicação, lhes consome a alma. Em
nome das coisas boas, têm mesmo de reagir à adversidade.
UMA
TRAGÉDIA QUE PARECE INVISÍVEL
Nos
últimos tempo, nunca tanto se falou e escreveu sobre erudição. Em
Coimbra, vindo dos cofres municipais, desde feiras de rua até
festivais patrocinados pelo erário público, há dinheiro, em
milhões, para tudo o que faça soar a campainha da Cultura. O
conceito passou a ser uma espécie de lençol que vai cobrindo os
interesses dos apoiantes mais chegados -que, a propósito, são os menos necessitados– e, escandalosamente, vai descobrindo os pés, como quem diz, abandonam-se à sua sorte, aqueles que mais precisam e não têm voz para reivindicar.
Curiosamente,
ou talvez não, não há planos integrados de contingência em
políticas para revitalizar e recuperar o comércio tradicional. Na
última década, contabilizadas pelo blogue, teria encerrado cerca de
uma centena de lojas tradicionais mais antigas. Desde Janeiro,
último, contando com este fecho de que escrevo agora, já lá vão
23.
O
comércio de rua, por ser estruturalmente económico porque, para
além de tocar a macro, mexe directamente a micro-economia doméstica,
é também essencialmente social. E não será cultural? O
desaparecimento de profissionais do comércio no Centro Histórico,
por falta de apoio do executivo local, é assustador -e, como escrevi
em cima, por imbricar no consumo de outros negócios, está a
contribuir para o afundamento desta área velha. Salvo poucas
excepções, apesar de tentar uma adaptação às circunstâncias,
estruturais e conjunturais, a compra e venda familiar está em fase de
liquidação.
E,
perante o funeral que se avista aos nossos olhos, com o elogio enternecedor e desbragado da oposição, o que faz o governo local da
Praça 8 de Maio? A toda a pressa, num faz-de-conta impossível de
disfarçar, criou um Orçamento Participativo com a temática “A
Dinamização do Centro Histórico”. Depois do concurso
concluído e atribuídos vencedores, alguém pode apontar um destes projectos que
traga alguma coisa de novo para a Baixa e para a Alta?
Sem
que nada se faça para inverter esta tendência, embora com menos
gravidade que em Lisboa e no Porto, a habitação, em Coimbra, para
moradores de uma classe média está também a desaparecer. Por o
conforto nunca ter sido uma qualidade, e coadjuvado por leis e
políticas de empobrecimento dos proprietários, cuja venda de
prédios, agora, é uma fuga para a frente, estão a multiplicar-se
imensos casos sociais encobertos. Com muitas pessoas a terem como
único rendimento o RSI, Rendimento Social de Inserção, há na
Baixa imensos locados sem água canalizada e sem luz eléctrica. Sem
que nada se faça, estamos a fabricar um barril de pólvora social.
É
PRECISO APOIAR A TOXICODEPENDÊNCIA
Ainda
que pareça paradoxal escrever que “é preciso apoiar a
toxicodependência” é assim mesmo que deve entender-se. Bem
sei que ficaria melhor escrever “que é preciso lutar contra a
toxicodependência”.
Quero
dizer que, em vez de se gastarem milhões a lutar contra o
narco-tráfico da droga é preciso mudar o sentido das políticas
sociais. Desde há cerca de meio-século que as normas legislativas
vão ao encontro do que agrada mais ao povo, inculto, agarrado a uma
moral bacoca e incapaz de pensar no futuro dos netos. Isto é, como
nos filmes, o que interessa a esta massa abstrata é que, em
espectáculo cinematográfico, os maus sejam presos e os bonzinhos
continuem na mesma vida -desde que não seja o nosso filho. Mesmo que
seja só a arraia miúda e os cabeças do dragão continuem impunes.
Neste show mediático, fazendo a vontade aos políticos de
carreira, as polícias embarcam no quadro cénico e expressam que
estão atentas e, de peito cheio e ufano, mostram na televisão que
apreenderam mais umas quantas dezenas de toneladas de material.
E
socorri-me desta longa introdução para mostrar que é preciso, com
urgência, fazer alguma coisa de visível para evitar o cenário
trágico que se está a passar em muitos largos, becos, ruas e ruelas
da Baixa. Nunca o consumo endovenoso, à vista de todos, foi tão
flagrante.
Estamos
perante um caso de saúde pública.
É
preciso criar uma estrutura reservada para que estas pessoas possam
injectar-se com segurança, com cuidados médicos. Por outras
palavras, contra ventos e marés da opinião pública, é preciso
criar com brevidade uma sala de chuto na Baixa.
Estes
políticos que temos a gerir a cidade são capazes de um arrojo
destes? Terão a coragem necessária para afrontar a falsa moral que
nos rodeia? Na dúvida, espera-se sentado!
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