sábado, 14 de julho de 2018

EDITORIAL: BAIXA, O ADVENTO DOS ÚLTIMOS DIAS





Com muitas pessoas a terem como único rendimento o RSI,
Rendimento Social de Inserção, há na Baixa imensos
locados sem água canalizada e sem luz eléctrica. Sem que
nada se faça, estamos a fabricar um barril de pólvora social.”


Hoje é o dia 14 de Julho de 2018. Segundo a Wikipédia, esta mesma data, mas de 1789, ficou assinalado na história como o início da Revolução Francesa. Os parisienses tomaram a Bastilha. Foram presos os representantes do regime monárquico e libertados sete prisioneiros políticos.
Hoje extingue-se na Baixa uma das marcas mais importantes dos últimos quarenta anos. A seu pedido não vou identificar para já. Alegadamente, mesmo no fim de um percurso de grande relevo comercial na história da cidade, o comerciante vai tentar levar a marca para outro lugar porque esta já não dá, segundo as suas palavras carregadas de emoção e emolduradas com as lágrimas a correrem pelo rosto marcado pelo tempo.
Pela sua partida, o nosso bairro inevitavelmente vai ficar mais pobre. A partir de hoje, o pequeno supermercado fica com menos fregueses. O pequeno restaurante, onde almoçavam todos os dias, vai ficar com várias cadeiras vazias. O café, onde tomavam a bica diariamente e às vezes uma cerveja com tremoços, vai vender menos . O barbeiro masculino vai perder mais um cliente, a somar a outros tantos que já lá vão; a cabeleireira, olhando de dentro para fora e fazendo contas à vida, vê sumir mais um cliente. O dono do quiosque da esquina, preocupado já com a razia que grassa, vê desaparecer mais um comprador de jornais.
Nós, aqueles que vão ficando na fila à espera de partirem também, vemos irem pessoas que gostávamos muito, camaradas confiáveis onde a amizade, como artérias sanguíneas, eram o fio de vida que nos conduziam diariamente para um fim anunciado mas esquecido.
Eles, os comerciantes, marido e mulher, depois de quatro décadas a percorrer o mesmo caminho numa rotina que se transformou vital, na segunda-feira, depois de uma noite mal dormida, vão acordar e, ao lembrar-se que já não vão para o mesmo sítio de sempre, vão receber um ilusório murro no estômago que, apesar de ser psicológico, vai doer muito mais. Com o pranto a correr pelas cercanias do rosto, vão abraçar-se e, em perguntas de retórica, vão interrogar que mal fizeram para merecer uma sorte assim.
Adivinha-se, porque fazem parte de uma geração muito sacrificada que passou muito para chegar até aqui, que vão resistir ao sentimento de falhanço que, num roer sem explicação, lhes consome a alma. Em nome das coisas boas, têm mesmo de reagir à adversidade.


UMA TRAGÉDIA QUE PARECE INVISÍVEL


Nos últimos tempo, nunca tanto se falou e escreveu sobre erudição. Em Coimbra, vindo dos cofres municipais, desde feiras de rua até festivais patrocinados pelo erário público, há dinheiro, em milhões, para tudo o que faça soar a campainha da Cultura. O conceito passou a ser uma espécie de lençol que vai cobrindo os interesses dos apoiantes mais chegados -que, a propósito, são os menos necessitados– e, escandalosamente, vai descobrindo os pés, como quem diz, abandonam-se à sua sorte, aqueles que mais precisam e não têm voz para reivindicar.
Curiosamente, ou talvez não, não há planos integrados de contingência em políticas para revitalizar e recuperar o comércio tradicional. Na última década, contabilizadas pelo blogue, teria encerrado cerca de uma centena de lojas tradicionais mais antigas. Desde Janeiro, último, contando com este fecho de que escrevo agora, já lá vão 23.
O comércio de rua, por ser estruturalmente económico porque, para além de tocar a macro, mexe directamente a micro-economia doméstica, é também essencialmente social. E não será cultural? O desaparecimento de profissionais do comércio no Centro Histórico, por falta de apoio do executivo local, é assustador -e, como escrevi em cima, por imbricar no consumo de outros negócios, está a contribuir para o afundamento desta área velha. Salvo poucas excepções, apesar de tentar uma adaptação às circunstâncias, estruturais e conjunturais, a compra e venda familiar está em fase de liquidação.
E, perante o funeral que se avista aos nossos olhos, com o elogio enternecedor e desbragado da oposição, o que faz o governo local da Praça 8 de Maio? A toda a pressa, num faz-de-conta impossível de disfarçar, criou um Orçamento Participativo com a temática “A Dinamização do Centro Histórico”. Depois do concurso concluído e atribuídos vencedores, alguém pode apontar um destes projectos que traga alguma coisa de novo para a Baixa e para a Alta?
Sem que nada se faça para inverter esta tendência, embora com menos gravidade que em Lisboa e no Porto, a habitação, em Coimbra, para moradores de uma classe média está também a desaparecer. Por o conforto nunca ter sido uma qualidade, e coadjuvado por leis e políticas de empobrecimento dos proprietários, cuja venda de prédios, agora, é uma fuga para a frente, estão a multiplicar-se imensos casos sociais encobertos. Com muitas pessoas a terem como único rendimento o RSI, Rendimento Social de Inserção, há na Baixa imensos locados sem água canalizada e sem luz eléctrica. Sem que nada se faça, estamos a fabricar um barril de pólvora social.


É PRECISO APOIAR A TOXICODEPENDÊNCIA


Ainda que pareça paradoxal escrever que “é preciso apoiar a toxicodependência” é assim mesmo que deve entender-se. Bem sei que ficaria melhor escrever “que é preciso lutar contra a toxicodependência”.
Quero dizer que, em vez de se gastarem milhões a lutar contra o narco-tráfico da droga é preciso mudar o sentido das políticas sociais. Desde há cerca de meio-século que as normas legislativas vão ao encontro do que agrada mais ao povo, inculto, agarrado a uma moral bacoca e incapaz de pensar no futuro dos netos. Isto é, como nos filmes, o que interessa a esta massa abstrata é que, em espectáculo cinematográfico, os maus sejam presos e os bonzinhos continuem na mesma vida -desde que não seja o nosso filho. Mesmo que seja só a arraia miúda e os cabeças do dragão continuem impunes. Neste show mediático, fazendo a vontade aos políticos de carreira, as polícias embarcam no quadro cénico e expressam que estão atentas e, de peito cheio e ufano, mostram na televisão que apreenderam mais umas quantas dezenas de toneladas de material.
E socorri-me desta longa introdução para mostrar que é preciso, com urgência, fazer alguma coisa de visível para evitar o cenário trágico que se está a passar em muitos largos, becos, ruas e ruelas da Baixa. Nunca o consumo endovenoso, à vista de todos, foi tão flagrante.
Estamos perante um caso de saúde pública.
É preciso criar uma estrutura reservada para que estas pessoas possam injectar-se com segurança, com cuidados médicos. Por outras palavras, contra ventos e marés da opinião pública, é preciso criar com brevidade uma sala de chuto na Baixa.
Estes políticos que temos a gerir a cidade são capazes de um arrojo destes? Terão a coragem necessária para afrontar a falsa moral que nos rodeia? Na dúvida, espera-se sentado!

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