Faltam poucos minutos para as 14h00, nesta Sexta-feira Santa, na Baixa de Coimbra. O dia está acinzentado. Mais que certo,
durante a tarde, ainda vai cair aquela morrinha de molha-tolos. Acabei de
almoçar numa pequena tasquinha ali para os lados e a meio da Rua da Sofia.
Éramos dois ou três clientes sentados ao balcão. Não mais. Agora faço o
percurso inverso, de regresso, em direcção à Praça 8 de Maio. Enquanto troco os
passos, vou apreciando todos os estabelecimentos abertos. As casas de hotelaria
estão a meio-gás, as lojas de comércio estão completamente sem ninguém.
Ao lado da Pastelaria Palmeira um
homem de cinquenta e muitos está sentado no chão com as pernas cruzadas e
mostra umas pequenas cicatrizes nas canelas. De rosto fechado e cara de
suplício, com a mão aberta com moedas, ostenta um pequeno cartaz aos seus pés,
na calçada: “Pela Nossa Senhora de Fátima
me ajudem por favor. Eu tenho um aparelho de oxigénio e estou sujeito a ficar
sem casa porque a minha reforma não chega. Por Deus e Virgem Maria me ajudem”. Rebusco
os meus bolsos e nem uma moeda para amostra. Na minha tolerância, falo com ele. Aceita comer alguma
coisa na pastelaria Palmeira, ali ao lado? Interrogo. “Não senhor! Já almocei! Uma moedita é que dava jeito”, respondeu.
Continuei a andar. Em frente à
Câmara Municipal de Coimbra –hoje encerrada, por ser Dia Santo-, meio-deitado no
corrimão de pedra, está o “escurinho”, numa posição de abandono, de pernas
estendidas, olhos semi-cerrados e apoiado num dos cotovelos parece pensar. Um
pouco ao lado, em grupo, vários romenos falam sobre a sua vida -quem sabe sobre
a crise que se abateu sobre a venda do “bord’água”?
A Praça 8 de Maio está semi-vazia,
com as esplanadas cheias de cadeiras vazias. No patim da Igreja de Santa Cruz,
a dona Rosa Maria, vendedora de bolos de Ançã, com o açafaite ornamentado e em posição, está junto do Luís Cortês,
músico de rua, e, no conjunto, fazem um lindo par de jarras.
Entro na Rua Visconde da Luz, reparo que há poucos
transeuntes. Aqui e ali ouve-se a língua de Cervantes, mas é uma pequena réplica
de anos passados. A descer, apoiada em duas bengalas e sustentada nos seus 90
anos, vem a dona Adelaide. Quando me viu, atira logo: “olhe lá, quando é que
você vem tocar para a rua? Gostava tanto de vos ouvir!”. Tiro-lhe uma foto e
ela atira: “toda a gente me tira
retratos, carvalho! Se me pagassem, estava rica, fosca-se!?!”. E muda logo
para a conjuntura: “ isto está “fordido”,
não está?”. E eu rio-me –valha-me esta graça de mulher para, por momentos,
me tirar do meu ensimesmamento.
Continuo a andar na direcção do Largo da
Portagem. Estou agora na Rua Ferreira Borges. Reparo que as lojas comerciais
praticamente não têm ninguém. Olho para o chão e vejo o estado do piso que já
conheceu melhores dias. Os cafés nesta rua larga estão bem compostos, quer nas
esplanadas, quer no interior. Ouve-se a pronúncia espanhola intensamente. E chego
ao largo do senhor Joaquim António de Aguiar, que lá do cimo do pedestal, de
caneta na mão, continua a apontar tudo sem mexer um músculo. Aqui as esplanadas
também levam um suficiente na ocupação.
E desço as escadas do Gato. Começa
a chover –que mania o São Pedro estar sempre a provocar o pessoal! De certeza
que o senhor de todas as águas do mundo tem problemas de afirmação. Os estabelecimentos comerciais neste perímetro envolvente estão às moscas. Vou em frente e entro na
loja da Lena – a minha correspondente
exterior para as questões noticiosas do interior da Rua Sargento-Mor. Começo
por cumprimentar e perguntar: novidades, Lena? Não há? Está acompanhada pela
Teresinha Pena, a minha diva e que já contei a sua história aqui. Como já é
hábito, a Helena Gomes, a Lena, está sentada,
de agulha na mão, a fazer coelhos de pano e que vende a 1,50 €. Interrogo esta
minha prezada amiga da razão de fabricar os bonecos e os vender muito abaixo do
custo e nem pagar o seu trabalho. Claramente que está a fazer “dumping”. Tens noção, Lena? Interrogo no
meio de um sorriso irónico. Estás a substituir os chineses, que, segundo se
consta, trabalham por uma tigela de arroz? Responde assim: “faço estes bonecos por ternura. É uma forma
de me manter ocupada. O seu efeito, para mim, é tão relaxante como uma droga, ou
comprimido para a ansiedade.”
Continuo a andar em direcção à
Praça do Comércio que, como já é hábito, está parcialmente ocupada com
automóveis irregularmente estacionados. As esplanadas estão a meia-tarimba. Uma
vendedora de almoços, de um dos restaurantes da praça, atira-se a mim para me vender uma refeição, mas eu não
posso. Para além de estar gordo, devido à minha carência financeira tenho de
comer cada vez menos –e trabalhar cada vez mais para aguentar o peso do corpo. Olho para o chão, para as lajetas de pedra e apercebo-me que estão em muito
mau estado. Reparo num arranjo recente às
três pancadas. Um qualquer habilidoso –se calhar serralheiro armado em
calceteiro- colocou uma muito mal-amanhada
laje na via –muito mais clara do que as que estão- e ao lado deixou uma solta e
que pode originar quedas em cadeia.
Nestes entrementes encontro um amigo que
sabe mais da Baixa a dormir do que eu acordado. Falamos do desleixo a que está
votada esta área velha, sobretudo depois da agregação das freguesias, cuja sede
é junto aos Arcos do Jardim, no Bairro de Sousa Pinto. Comentamos do facto de
alguns fregueses desta zona, maioritariamente idosos, terem de lá se deslocarem
várias vezes pelo mesmo assunto. Pergunta ele: “porque não abrem ao público a antiga sede da ex-Junta de São
Bartolomeu?”. Naturalmente que eu não sei, mas fica a interrogação.
Continuamos a especular sobre o futuro breve desta zona histórica. Agora que a
junta de freguesia foi extinta, associada a outras, quem vai assegurar a
realização dos Santos Populares no Largo do Romal? É que o último presidente,
Carlos Clemente, deixou uma marca de água muito acentuada aqui na Baixa. Quem
vai dar continuidade ao trabalho feito até aqui? Quem responde? Interroga o meu
amigo. E eu sei lá? O que sei é que, apesar de entender o princípio da
agregação das freguesias, o modelo seguido é um logro, uma farsa para quem vive
nas áreas envolventes. Se aqui, na cidade, é assim, o que não será no interior
do território?
E entro na Rua Eduardo Coelho, o
último afluente navegável antes de chegar ao meu porto de abrigo. E dei a volta ao quarteirão. Nesta
artéria, tal como as que descrevi, o optimismo dos comerciantes, com quem
falei, não vai além de dois respiros. As lojas estão como as outras, vazias e à
espera de quem não prometeu vir. Valerá a pena o comércio continuar a substituir este Dia Santo pela segunda-feira, sobretudo, quando os serviços públicos estão encerrados neste dia feriado e abertos no primeiro dia da semana?
Tal como o cartaz do pedinte na
Rua da Sofia, vamos todos implorar a Nossa Senhora de Fátima que nos ajude.
Estamos todos a ficar sem oxigénio e com a nossa casa para pagar; sem esperança;
sem reforma -esta que nunca mais chega-, e, por tudo isto e mais alguma coisa
que não vai no rol, pedimos a Deus e à Virgem que nos ajudem. Pode ser?
2 comentários:
triste essa realidade.. :(
triste essa realidade.. :(
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