Visando uma crónica acerca de um texto
que escrevi, em que o autor, sobre o mesmo assunto, retrata como Portugal, sem planos de sustentação se
estatela e quebra em mil bocados, elaborei a seguinte resposta:
O país está transformado numa enorme pira em
que, diária e paulatinamente, e como se estivessem numa passadeira rolante vão
ardendo imensas, muitas, pequenas actividades industriais e mercantis –e com
elas, por arrastamento, vidas humanas que lhes estão subjacentes, porque ainda
não se inventou nenhuma outra forma de rendimento directo, e digno, que não
seja o trabalho. É um processo maquiavélico de terror, cujos métodos bárbaros e
sanguinolentos –não tão desconhecidos como isso- são simplesmente para
alimentar a fogueira. De certo modo, com alguma simplicidade, faz lembrar o malandro
que, em vez de procurar lenha no pinhal, começa a queimar as suas próprias mobílias
para se aquecer no inverno. Claro que este extermínio é muito mais do que um
acto individual. É um sistema -já sistémico e nosso conhecido de outras épocas-
em que as grandes áreas comerciais lideradas pelo capitalismo selvagem e um
consumidor interesseiro, manipulável e estúpido, ávido de sangue e sofrimento
alheios, sentados à volta da fogueira, gozam o prazer de quem está a ser
incinerado. De certo modo, até parece que regressámos ao início do século XVI e
princípios de XIX, à Inquisição –e também
ao início do século XX, com a revolução Bolchevique, ascensão de Hitler ao
poder e troar dos canhões nas Primeira e Segunda Guerra Mundial, em que, pela
luz de iluminados pensadores sem escrúpulos, morreram largas dezenas de milhões
de pessoas. Se repararmos, os métodos são idênticos: o panfletário estratagema
de convencimento de uma entidade (Estado) dirigido às massas. A argumentação é
sempre a mesma e apontada sobre dois tópicos: a ideologia e o interesse.
A ideologia, neste caso, sabemos
muito bem qual é: uma nova ordem mundial assente no ultraliberalismo e na
transformação do cidadão em submisso ao opressor. O interesse é o velhinho método da cenoura dirigido ao povo: é
preciso provocar uma razia, uma purga necessária, e acabar com os
contra-revolucionários, aqueles que, mesmo sem grande força, com outras ideias –mais
inovadoras ou conservadoras, para aqui não interessa a definição- fazem sombra
à ocupação plena das hordas invasivas planetárias. O que se propaga às mentes
ansiosas pelo Carp Diem é que para se
alcançar um futuro melhor -onde basta estalar os dedos para adquirir qualquer bem
ao preço da uva mijona, onde o esforço para obter qualquer coisa é residual ou não
existe-, assente na beleza e no carregar do comando, estes “pacóvios”, “atrasados”,
os pequenos comerciantes que continuam a laborar numa certa linha ancestral, são inimigos da
modernidade.
O que me faz impressão –ou talvez nem tanto quanto isso, uma vez
que é da sociologia- é a indiferença de todos. Dos primeiros, Estado e
organização capitalista, nem é de admirar, porque ambos estão transformados em
aves de rapina que comem tudo, até os ossos, para não deixar rasto. Agora, e os
outros? Os que vão caindo e outros que estão na fila? Como é que se pode
entender que ninguém levante um braço para fazer parar esta chacina? Ainda há
dias escrevi um texto em que defendia que estamos em plena guerra civil
comercial. As mortes (o desaparecimento de estabelecimentos tradicionais) são
tantas, ao virar da esquina, que passaram a fazer parte da paisagem e olha-se
para a sua imagem da mesma forma que se olha para uma árvore derrubada –mas atenção,
e isto é também muito curioso, se se tratar de um animal que esteja em perigo
ou morto na estrada, cão ou gato, acciona-se todos os meios ao alcance,
bombeiros, protecção civil e até exército, se preciso for.
Com a minha completa estranheza,
deixo uma constatação e uma interrogação: alcançámos um nível de sociedade,
mais culta, mais inteligente, mais sensível, mais responsável, como nunca
tivemos até agora. O que se passa?
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