sábado, 19 de abril de 2014

O EXTERMÍNIO DO COMÉRCIO TRADICIONAL


Visando uma crónica acerca de um texto que escrevi, em que o autor, sobre o mesmo assunto, retrata como Portugal, sem planos de sustentação se estatela e quebra em mil bocados, elaborei a seguinte resposta:

O país está transformado numa enorme pira em que, diária e paulatinamente, e como se estivessem numa passadeira rolante vão ardendo imensas, muitas, pequenas actividades industriais e mercantis –e com elas, por arrastamento, vidas humanas que lhes estão subjacentes, porque ainda não se inventou nenhuma outra forma de rendimento directo, e digno, que não seja o trabalho. É um processo maquiavélico de terror, cujos métodos bárbaros e sanguinolentos –não tão desconhecidos como isso- são simplesmente para alimentar a fogueira. De certo modo, com alguma simplicidade, faz lembrar o malandro que, em vez de procurar lenha no pinhal, começa a queimar as suas próprias mobílias para se aquecer no inverno. Claro que este extermínio é muito mais do que um acto individual. É um sistema -já sistémico e nosso conhecido de outras épocas- em que as grandes áreas comerciais lideradas pelo capitalismo selvagem e um consumidor interesseiro, manipulável e estúpido, ávido de sangue e sofrimento alheios, sentados à volta da fogueira, gozam o prazer de quem está a ser incinerado. De certo modo, até parece que regressámos ao início do século XVI e princípios de XIX, à Inquisição –e também ao início do século XX, com a revolução Bolchevique, ascensão de Hitler ao poder e troar dos canhões nas Primeira e Segunda Guerra Mundial, em que, pela luz de iluminados pensadores sem escrúpulos, morreram largas dezenas de milhões de pessoas. Se repararmos, os métodos são idênticos: o panfletário estratagema de convencimento de uma entidade (Estado) dirigido às massas. A argumentação é sempre a mesma e apontada sobre dois tópicos: a ideologia e o interesse. A ideologia, neste caso, sabemos muito bem qual é: uma nova ordem mundial assente no ultraliberalismo e na transformação do cidadão em submisso ao opressor. O interesse é o velhinho método da cenoura dirigido ao povo: é preciso provocar uma razia, uma purga necessária, e acabar com os contra-revolucionários, aqueles que, mesmo sem grande força, com outras ideias –mais inovadoras ou conservadoras, para aqui não interessa a definição- fazem sombra à ocupação plena das hordas invasivas planetárias. O que se propaga às mentes ansiosas pelo Carp Diem é que para se alcançar um futuro melhor -onde basta estalar os dedos para adquirir qualquer bem ao preço da uva mijona, onde o esforço para obter qualquer coisa é residual ou não existe-, assente na beleza e no carregar do comando, estes “pacóvios”, “atrasados”, os pequenos comerciantes que continuam a laborar numa certa linha ancestral, são inimigos da modernidade.
O que me faz impressão –ou talvez nem tanto quanto isso, uma vez que é da sociologia- é a indiferença de todos. Dos primeiros, Estado e organização capitalista, nem é de admirar, porque ambos estão transformados em aves de rapina que comem tudo, até os ossos, para não deixar rasto. Agora, e os outros? Os que vão caindo e outros que estão na fila? Como é que se pode entender que ninguém levante um braço para fazer parar esta chacina? Ainda há dias escrevi um texto em que defendia que estamos em plena guerra civil comercial. As mortes (o desaparecimento de estabelecimentos tradicionais) são tantas, ao virar da esquina, que passaram a fazer parte da paisagem e olha-se para a sua imagem da mesma forma que se olha para uma árvore derrubada –mas atenção, e isto é também muito curioso, se se tratar de um animal que esteja em perigo ou morto na estrada, cão ou gato, acciona-se todos os meios ao alcance, bombeiros, protecção civil e até exército, se preciso for.
Com a minha completa estranheza, deixo uma constatação e uma interrogação: alcançámos um nível de sociedade, mais culta, mais inteligente, mais sensível, mais responsável, como nunca tivemos até agora. O que se passa?

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