(Imagem da Web)
Passa por nós na rua, segura de si, com uma
graciosidade que nos toca e a fazer lembrar o filme “mulher de vermelho”, com Kelly leBrock, de 1984. Em passo
cadenciado, toc, toc, toc, deixa no
ar uma envolvência perfumada e libidinosa. Já passou a fronteira dos “cinquentas”,
mas o seu corpo é modelado em formas como saído de um barrista de grande
nomeada. Quando ela passa, leva os olhares de todos pregados ao seu corpo
esbelto e belo. Olha o novo, o de meia-idade assobia e o velho, de olhos a
ameaçarem saltar das órbitras, sem amarras, e sem conseguir suster o desejo
materializado nas palavras, atira: “ai ó
filha, que és tão boa!”.
É divorciada há mais de uma década, ou, se for
menos, já está separada de facto há muitos anos. Os seus filhos, já crescidos,
estão na faixa etária entre os vinte e os trinta anos e, na maioria dos casos,
já abandonaram o lar. Tem em casa um cão e um gato, cujos latidos e miados, em
correria por entre salas e corredores, substituem as outrora vozes humanas. Ambos
têm nome de pessoa. Se for macho terá nomenclatura de homem, se for fêmea será
apelido de mulher. Apesar da rivalidade natural, canino e felino são felizes e
se dão como irmãos da mesma espécie. Estes animais são a sua companhia, no sofá,
na cama e ocupam a sua mente em preocupações variadas. Esta mulher solitária fala
com eles como de pessoas vivas se tratasse. Quando algum dos filhos telefona
leva horas a ouvir, em desabafo, tudo o que eles têm para dizer. É muito
natural que eles liguem para pedir dinheiro. Aqueles, os filhos, para além de
não terem tempo para a escutar, nunca lhe perguntam: “estás bem, mamã? Como vai a tua vida? És Feliz?”. Pode acontecer
esta mãe sozinha ter também de ouvir as suas críticas acerca da forma dela vestir: “essa camisola vermelha não te fica bem -é
demasiado ousada para a tua idade. Essa saia está muito curta! Qual é a tua mãezinha?!”
Quando bate a porta de saída não gastou muito tempo do seu dia a mirar-se ao espelho. Aliás, não gosta da imagem reflectida. Aquelas rugas malditas
que teimam em nublar a sua fronte preocupam-na mas não lhe tiram o sono. A seguir em rotina de campanha, o trajecto de
vida desta dama independente divide-se entre o emprego e a casa –aqui tem
sempre trabalho, ora limpa o pó, ora arruma o que está mais que arrumado, ora
cuida das roupas dos filhos que, mesmo a morarem fora, virão recolher mais
tarde. Se tiver quintal, para além do cão e gato, pode ter também galinhas,
patos e até coelhos. Quando está reformada as suas voltas são sempre iguais:
casa, café, passando pela rua principal no seu andar ondulante e voluptuoso, ginásio
ou passeios pedestres, e retorno ao lar-doce-lar. Uma e outra tornaram-se
escravas da sua própria limitação e prisioneiras de grilhetas invisíveis. Apesar
de continuarem à espera do seu príncipe encantado –que mesmo que apareça duvidará
das suas intenções e fugirá dele como o diabo da cruz- há muito que deixaram de
sonhar com uma vida prazenteira e diferente. Passaram a gostar de viver só. Fizeram
da solidão a sua droga e viciaram-se no seu próprio círculo de entediamento.
Uma grande parte foi vítima de violência doméstica. Por isso, é uma mulher medrosa, assustada, retraída nos afectos, desconfiada e de auto-estima
balouçante como cana no canavial. Passou a ver todo o homem como potencial agressor e a ter medo de tudo, de todos e até da
sua própria sombra. Só o imaginar que possam supor que ela namore com alguém das redondezas dá-lhe suores frios e faz-lhe tremer as canetas. E
os filhos? O que irão dizer os filhos? “Ai,
Senhora! Nossa Senhora de Fátima me valha!” –exclama em dois suspiros e
antes de se atirar ao colchão já a madrugada vai a trote e entradota. Por isso mesmo, à noite, rumo ao silêncio de conluio
convergente, navega na Internet, no Facebook
ou num qualquer site de namoros.
Ao menos ali, duvidando de tudo e de todos, estará sempre protegida da vigilância dos herdeiros, das
vistas curtas da vizinhança e da crítica acintosa da maioria.
É hipocondríaca. No entanto, no paradoxal, cuida mal da sua saúde e não teme o fim. Apregoa aos
sete ventos que vai desaparecer cedo deste mundo, talvez para justificar a si mesma a sua própria inutilidade, impotência e incapacidade de amar. Ao desvalorizar a morte, a intenção é, em grito surdo, chamar a atenção para os mais próximos. Apesar de distante do coração mas tão perto da memória, o ex-marido continuará a considerá-la como uma propriedade perdida e prosseguirá o desejo doentio de controlar a sua vida amorosa. Aquele, em manipulação sentimental, usará os filhos como instrumentos de influência para a sua concretização.
Quem a vê a dar esmola ao pobre no recanto da viela é
levado a pensar que é muito generosa. Acontece que nem por isso. Envolvida numa secura como defesa pessoal, tornou-se egocêntrica, fria e fechada na sua concha. “E porque pratica o esmolar?”, interroga
um dos seus admiradores. “Porque sou
muito temente a Deus! E fazer o bem é próprio de um bom cristão!”,
responderá em surdina, sem o olhar nos olhos, e continuando a caminhar rumo a um destino que não escolheu mas que lhe calhou em sorte.
Qual teria sido a razão desta mulher, tão bela e graciosa, ter deixado de sonhar? O receio de falhar! O medo de não conseguir ser feliz!
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