LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: UM PRESÍDIO CHAMADO BAIXA"; e "ROSTOS SEM ROSTO: A PROSTITUTA"
REFLEXÃO: UM PRESÍDIO CHAMADO BAIXA
A dona Graça é uma cozinheira de excelência e,
durante dois anos, passou agruras na Rua Velha. Depois desta angústia que a ia
mandando para o charco esteve estabelecida no Snack-bar Marcius, na Rua da Sofia, nos últimos cinco anos e até
agora A semana passada foi a última de trabalho na Baixa. Passou o seu negócio
a uma nova família. Os novos adquirentes, tenho a certeza porque sou cliente
diário, herdam uma boa casa feita a pulso pelo desempenho esforçado do casal
Victor Pereira e Graça Santos.
Há um ano atrás entrevistei a
dona Graça e era patente o cansaço da sua luta contra moinhos de vento e pelo
continuar a pugnar por uma zona que, pelo abandono das entidades oficiais, leva
à saturação e ao baixar os braços do mais forte. Por isto tudo, tenho a
certeza, esta lutadora mulher vai embora. Não é que entenda que os que estão
são os melhores e quem vem de novo fique aquém. Nada disso! É a dinâmica
natural das coisas. O que quero dizer é que estes
partem, aqueles partem e todos, todos, se vão! A Baixa fica sem mulheres, sem
homens, e prenhe de solidão. Tento mostrar que se pressente aqui um
permanente desalento e o desistir de lutar por quem cá passou parte da vida.
A Baixa, nos últimos anos, está transformada
num presídio. Só cá permanece quem não tem hipótese de remover a pena e partir
para a libertação. Nos últimos anos tem sido assim. Vão embora de vez os ressarcidos,
os que morrem agarrados ao balcão e os que são obrigados a abandonar por insolvência
dos seus negócios. Por isso mesmo, ambos, não voltarão mais –em metáfora, e que
já teriam cumprido a sua punição. Depois há os precários, aqueles cujos
espaços são de sua propriedade e optam por arrendar, ou não, e desistir da atividade
comercial. Como se podem dar ao luxo de ter um pé dentro e outro fora, escolhem
o melhor para os seus interesses a permanecer diariamente aqui e morrerem de
tédio todos os dias um pouco. Assim de repente e nos últimos tempos, que me
lembre, foi o Paiva, com duas
sapatarias, na Rua Eduardo Coelho, foi a sapataria Angel, na mesma rua, foram
duas farmácias na Praça do Comércio, foi uma casa de tecidos na Rua do Corvo,
foi a Boutique Romy, no Largo da
Freiria, e outras que agora não recordo. E depois há então os outros, os eternos, os condenados a prisão perpétua, que
não podem ter ordem de soltura por vários motivos -por dívidas, amarrados a
compromissos inadiáveis, e colados a funcionários com várias décadas e que não
podem indemnizar- e cuja permanência nesta prisão é a única opção possível, mesmo
até enquanto fonte única de rendimentos. Depois há ainda os utópicos
da esperança, sonhadores por força da conjuntura e à procura de um
amanhã melhor, que voluntariamente vêm de fora para as ilusórias grades em busca de uma ocupação, porque
estavam desocupados, e com um sentimento de inutilidade. Como desconhecem completamente
este ambiente presidiário basta um
mês cá dentro para quererem a liberdade. Porém, é muito tarde para voltar atrás
e, por força de um destino que escolheram, ficando emaranhados na teia, passam
a presos efetivos.
Felizes dos que, tal como a dona Graça, podem
escolher a liberdade. A maioria não pode. Felicidade para os que partem com
vida. Boa sorte para quem fica.
ROSTOS SEM ROSTO: A PROSTITUTA
“Sou
prostituta, tenho 48 anos de idade, e exerço esta atividade nas ruas da Baixa
há cerca de uma dezena de anos. Nasci em Miragaia, no Porto. Dei o primeiro
grito numa família abastada. Muito abastada. O meu pai, hoje aposentado, era
quadro superior de um banco. Estudei até ao 12.º ano num colégio católico. Não
me faltou nada. Fui educada com muito amor e carinho. O problema, talvez maior,
é que os meus pais são divorciados. A minha mãe é toxicodependente e alcoólica.
Depois tirei um curso de esteticista, massagista e visagista –assessora de
imagem. Exerci na cidade Invicta. Casei cedo e assim me mantive durante 20
anos, até conseguir aguentar a porrada que levava do meu ex-marido e os maus
tratos associados. Eu era uma mulher linda! Ainda hoje sou, apesar de estar um
pouco estragada. Casei para me libertar do bloqueio da minha família, que nem
um cigarro me deixava fumar. Sentia-me asfixiada pelos meus pais. Gostava do
meu marido, mas depressa o meu sonho se desvaneceu. Ele comigo fazia pouco
sexo, mas ia às prostitutas. Várias vezes apanhei doenças venéreas por causa
disso. A nossa existência é muito cruel. Nunca pensei em enveredar por esta
vida. Enquanto casada, tantas vezes me ofereceram dinheiro para eu fazer sexo
mas eu nunca quis. Era o amor, sabe? Até que tive de fugir dele por não
aguentar tanta pancada –pode ter a certeza de que, se calhar, como eu, a maioria
das prostitutas que anda por aí foi vítima de violência doméstica.
A VIDA DEPOIS DA VIDA
Então,
com, mais ou menos, 38 anos respondi a um anúncio de uma revista e conheci um
homem. Ele trouxe-me para Coimbra embalada na esperança de uma vida melhor. Mas
quem nasce atrás do sol-posto, com a má-sorte associada, dificilmente verá o
astro-rei brilhar. O fulano tinha apenas uma intenção em mente: que eu me
prostituísse. E depressa estava a aprender o “bê, à, bá” da mais antiga
profissão do mundo. Ele pertencia a uma rede de carne branca com ligações a
França e Holanda. Para me libertar dele foi o cabo das tormentas. Mas, nessa
altura, ninguém me ajudou. Cheguei a ir pedir ajuda a um vereador da Câmara Municipal,
para me arranjar um trabalho, e ele respondeu que eu fosse para o Largo do Paço
do Conde. Que era lá o meu lugar –que, curiosamente, é onde estou quase sempre
e junta com outras mulheres. Mais tarde apareceu-me um engenheiro de uma
instituição do Estado, um chefe de serviço –que ainda hoje lá exerce- que,
dizendo que gostava de mim, se revelou um gigolo. Pôs-me a trabalhar na noite.
Eu gostava dele, por isso me tornei sua amante. Mas o interesse dele não era o
meu amor. Tinha uma forma sub-reptícia, muito subtil, de se bater aos meus
ganhos, pedia prendas de grande valor. Nunca me deu nada. E eu tive de aprender
à minha custa. Os homens não valem uma merda! É amá-los e fornicá-los! Que é o
que faço mesmo! Dão-me prazer, um gozo danado, e ainda me pagam. Quem é aqui o
utilizado? São muito estúpidos! Às vezes perguntam-me se eu tenho orgasmo.
Tenho sim, filho –respondo. Tenho dois. O primeiro quando me pagas e o segundo
quando te vejo a puxar as calças para ires embora.
UM POUCO DE AMOR. PLEASE!
Sofro de
esquizofrenia bipolar. Tenho de tomar medicamentos para me aguentar. Às vezes
pareço zonza –sei lá quantas vezes você, ao passar por mim, assim teria pensado,
que eu levava uma broa. Nada disso. Eu não me drogo. Os homens tratam-nos como
coisas sem valor. Mas eu tenho sentimentos. Preciso de ser amada, ter um pouco
de carinho. E não tenho. Por vezes, quando estou mais em baixo, ligo ao meu pai
só para ouvir a sua voz, mas ele não me dá hipótese de continuar a conversa e
corta logo: “fala-me em números! Quanto precisas?” –ele nem a minha voz quer
ouvir. O meu progenitor, apesar de ter refeito a sua vida com outra mulher, vê
em mim a minha mãe –que, quando nova, era muito linda-, na voz, na imagem e em
tudo. Nunca superou isso. Ele todos os meses deposita cerca de 200 euros na
conta do assistente social que me acompanha. É este técnico que me vai dando o
dinheiro ao longo do mês. Estou a viver numa pensão da Baixa –mas não levo para
lá clientes.
ESCORREGAR NO CAMINHO
Cai-se
na prostituição por três motivos. Por expiação –no sentido de expurgar a culpa.
Mas que culpa? Por inspiração –há mulheres que gostam mesmo desta vida. E por
omissão –entregam-se à atividade sem recalcitrar. Sem se questionarem. Deixam-se
ir na corrente.
Isto é também um vício. Às vezes saio à noite para levar um agasalho a
uma colega e acabo por ficar. O dinheiro cega-me, sabe? Embora não precise de
muito. Por conseguinte, logo que faça 20 euros por dia, com um ou dois
clientes, chega-me. Não quero mais! Outras vezes também faço isto por missão.
Pode achar inverosímil, mas eu tenho prazer em dar satisfação aos homens.
Esta vida fez de mim uma psicóloga. Olho para qualquer rosto e, sem
nunca o ter visto, sou capaz de descrever a pessoa. Habituei-me a ler um homem
através da face. Saber ao segundo o que é que ele quer de mim. Trabalho com
homens sem taras. Estes indivíduos são perigosos. Tive más experiências. Já fui
violada mas não comuniquei à polícia. Ele apontou-me uma pistola, amarrou-me e
levou-me para a mata. Sei quem é, mas não quero falar disso. Nem os cães violam
as cadelas, porra! Trabalho com viúvos, divorciados e solteiros. Já me
propuseram casamento. Outros querem que eu vá viver com eles. Na maioria das
vezes, sobretudo os mais velhos, querem-me como companhia. Sou mais virada para
o trabalho de acompanhante… popular. Não é acompanhante de luxo! Veem mais em
mim a mulher e menos o objecto sexual. Está a perceber?!
As pessoas da Baixa tratam-me, todos, muito bem. Com muito afeto! Sou
simpática, não me drogo e não sou malcriada para ninguém. Faço aqui as compras
todas. Se tenho dinheiro pago logo, se não deixam-me levar. Confiam em mim.
Sabem que, apesar de ser prostituta, sou séria. Tenho dignidade. Tenho coração.
Aqui, dentro do peito bate uma alma. Entende? Sabem o que eu faço. Não ando
mascarada. Sabem que tenho uma filha que é médica e um rapaz que é economista
–os meus rebentos sabem muito bem o que faço. Dizem que a escolha é minha, é
uma opção de vida, e não têm nada a ver com isso. São uns queridos, os meus
filhos, não são?
Acabei a gostar desta vida. É uma forma de libertação. O patrão não
bate e a patroa não ralha.
Não espero nada da vida! Não tenho ilusões. O amor é uma utopia!
A VIDA NUM CARTÃO
Anda sempre acompanhada com um cartão de
vacinas que ostenta no cabeçalho “Cartão
Controlo do GAT-UP-REDUZ”. Este serviço está sediado no Terreiro da Erva. É
com ele que vai requisitar preservativos. “São
muito bons para mim e para outras como eu -enfatiza. Se não fossem estas instituições o que haveria de ser de nós?
Levam-nos ao hospital para fazer exames de três em três meses. Olhe aqui a
data! Fiz há dias análises ao sangue. Faço amiúde vezes rastreio contra o HIV,
Hepatite, Cancro do útero e da mama, e Sífilis. A maioria dos clientes nem sabe
disto. Pouca gente sabe. Mas quando a polícia nos identifica pede sempre este
cartão de vacinas. Você também não sabia, pois não?”
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