(Imagem da Web)
Comemorámos há dias 40 anos sobre o 25 de Abri
de 1974. Penso que talvez valesse a pena pensar nas conquistas que conseguimos
ao longo destas quatro décadas. Confesso que, a redigir as primeiras frases deste
texto, não sei muito bem por onde começar. Tenho uma angústia que me persegue,
uma ideia, mas não sei se conseguirei expor o que me vai no pensamento. À medida
que vou escrevendo vou tentar mostrar o que me move. Como ressalva, declaro que
não pretendo branquear o Antigo Regime. Nada disso! Quero apenas especular
sobre singularidades do antigamente e algumas que assistimos na actualidade.
Quando se deu o golpe eu tinha 17 anos de idade e trabalhava desde os 10. Tenho saudades dessa época? Não. Ou, no limite, só se for pela minha
jovialidade que, com muita pena, não voltará mais!
Visto pelos meus olhos e pelo que
vivi, comecemos por mostrar o que foi o Estado Novo nos últimos anos de 1970. No
que toca à parte económica a população, no geral, vivia melhor na cidade do que
na aldeia. Entre as duas convivências existia uma assimetria descomunal. Como
amostra de bem-estar aqui em Coimbra, exceptuando as zonas velhas da Alta e da
Baixa, praticamente todas as construções, relativamente recentes, tinham
casa-de-banho. Eram raras as edificações que tivessem este essencial símbolo de
boa vivência nas povoações do interior e mesmo junto ao litoral –de tal modo
que a primeira vez que tomei contacto com uma sanita e um bidé foi aqui e
depois de abandonar a minha aldeia.
No que toca a electrodomésticos fundamentais
como frigorífico, rádio e televisão eram mais comuns no burgo e escassos nos
lugarejos –no meu lugar de menino havia apenas uma televisão na mercearia.
Os urbanos, porque tinham mais
possibilidades de aceder aos estudos superiores, presumivelmente, tinham uma
consciência política e seriam muito mais cultos do que os rurais. Lembro-me
que, no lugarejo onde passei a infância, de um total de uma centena de
habitantes, somente meia dúzia de residentes teriam tido acesso à Universidade –destes
só três teriam concluído a licenciatura –se bem que talvez por parte dos pais
não houvesse uma grande sensibilidade para a formação intelectual como ferramenta
futura para os filhos. Ou seja, era uma cultura negativa, um costume de apostar
mais no trabalho físico e continuado, facilitista, no sentido de que implicava
custos enormes para uma bolsa de riqueza residual.
Não havia reformas para os
trabalhadores rurais e domésticas. Nos últimos dias, nesta comemoração, muito
se falou sobre isto mas, recordo, o aumento do ordenado mínimo para 3.300$00,
promulgado por Vasco Gonçalves, desencadeou o disparo do consumo interno –e com
isto não estou a fazer análise e a dizer
que foi bom ou mau do ponto de vista económico. Refiro apenas o facto. O que
sei é que, nessa época e aqui na cidade, de repente parecia que todos tinham
enriquecido subitamente. As lojas comerciais, literalmente, passaram a ser
invadidas, assaltadas, pelos consumidores.
Tudo se vendia sem importar o quê. As pessoas pareciam esfomeadas pelo comprar –não
escrevo de cor, eu estava a trabalhar no comércio e vi com os meus olhos. Na
parte que me toca de consumidor, lembro-me que, em 1977 e a prestações, comprei a minha primeira
televisão e frigorífico na desaparecida loja
Bruma, na Rua Adelino Veiga, e estive semanas à espera. Não havia para
entrega.
Fomos subindo, subindo no
conforto até que chegámos aos nossos dias com vários frigoríficos e televisões
em casa e vários automóveis encostados e sem saber o que lhes havemos de fazer
por, devido à quebra de rendimentos e aumento de custos energéticos, não
termos possibilidades para os manter activos.
Também no acesso à Universidade aconteceu a
mesma coisa. Democratizou-se o ensino superior. Sem dúvida e foi bom, mas
exagerou-se e hoje um curso universitário, salvo excepções, vale pouco e de tal
modo que, muitas vezes, para se conseguir um emprego médio tem de se ocultar a
formação adquirida. Talvez o erro foi ter-se desvalorizado completamente o
ensino técnico. E, nos nossos dias, o trabalho, tal como o conhecemos até aqui,
é cada vez mais solúvel e precário. A busca incessante pelo retirar esforço, no
paradoxal, está a matar o homem e a destruir completamente a sua ocupação
física no labor. A informática e a digitalização se, por um lado, elevam a
comodidade ao máximo, por outro, estão a aniquilar os seus rendimentos. Hoje um
desempregado sem meios de subsistência é um desenraizado, um ser errante
perdido, um pária, que, no fio da navalha, busca simplesmente a salvação e
agarra-se a qualquer coisa. O que, em face da sua sobrevivência premente, torna
justificável a acção directa, isto é, o roubo –não sei se será o caso, mas o
furto de dezenas largas de tampas de saneamento em ferro em toda a área urbana
pode indiciar isto mesmo.
Então, na mesma linha de
resistência, assistimos a uma horda de pessoas na rua, sobretudo jovens, a
tentarem vender qualquer coisa, desde perfumes, bugigangas, angariação de novos
contratos para telecomunicações. É um dó o que se está a passar. E o grave é o
respeito que nos devem merecer e darmos por nós, sem paciência nenhuma para os
escutar, quase a empurra-los das nossas vistas. É triste! Muito triste!
Embora não saiba se fui claro, o que parece é
que, num retorno impossível de fugir, numa velocidade estonteante, estamos a
recuar para um tempo que os mais velhos se recordam bem. Para além disso, embora
constatemos que a abastança não é sinónimo de felicidade, reparamos que nos
sentimos empurrados para uma espiral impossível de suster.
Depois desta volta em busca de algum
sentido nestas quatro décadas, o que resta de uma grande utopia? Pensemos… pensemos!
O que ficou foi a liberdade. Mas, se olharmos à volta, dá para ver que também
se está a exagerar. Perdeu-se o Norte. A liberdade, sem responsabilidade
colectiva, descambou em libertinagem, em cada um fazer o que lhe dá na real gana. Tal como aconteceu com os
bens tão necessários no nosso dia-a-dia, também a demasiada autonomia
individual para algumas permissões dá para verificar que cada vez mais está a entrar
pelo cano da sanita. O que nos permite antever que, de facto, só se valoriza o
que implica sacrifício na sua obtenção. O que é fácil, porque não deixa
história, perde valor rapidamente. Talvez seja por isto mesmo que os tempos que
vivemos sejam apenas uma passagem efémera. Saber para onde é que reside a
questão!
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