(Imagem da Web)
A aldeia
dos cansados era, há cerca de sete décadas, um lugarejo muito igual a
tantos outros de um país chamado Portucale. Tinha um cunho que a tornava
distinta da maioria: era uma comunidade de assento matriarcal. Ali, quem
mandava eram as mulheres. Eram elas o rosto, a identidade da prole. Nunca se
soube muito bem onde teria germinado o seu apodo relativo a cansados, que dera a nomenclatura ao
sítio. Sabia-se somente que seria milenar e teria procriado nos confins da
história. Entre outras, havia três famílias conhecidas, a da Responsabilidade, a da Facilidade e a da Saudade. A mais importante em termos estatutários seria a da
Responsabilidade. Para além da sua casa abastada de lavra, contava-se que era
uma parentela muito rica e descendia de linhagens marcadamente monárquicas. A
verdade é que muitas das terras que se avistavam até ao horizonte e davam
trabalho aos mais desguarnecidos da riqueza eram de sua propriedade. Quando era
preciso decidir algo na aldeia que implicasse o futuro ou mudança de costumes,
primeiramente, era sempre consultada a mãe Responsabilidade,
senhora de faces rosadas e olhos brilhantes, cabelo apanhado num toutiço,
camisa abotoada até ao pescoço e de mangas estendidas e saias rodadas até ao
chão. Os seus modos eram vincadamente austeros e passados a ferro em décadas de
reclusão. Embora de simpatia contida, eram acompanhados com uma disciplina
marcada onde o respeito imperava e os devaneios imediatamente cortava. Deus
estava presente no crucifixo do oratório do salão grande e o Pai Nosso
era invocado com respeito e solenidade. Ai de quem vulgarizasse o seu Santo Nome em gírias de lana caprina!
A matriarca Responsabilidade era muito poupada e os gastos eram milimetricamente
analisados com esquadro e régua. Festas eram raras no pátio do mausoléu
agrícola. A abertura da grande casa senhorial era apenas feita uma vez por ano,
por alturas da festa anual em honra do santo padroeiro e era nessa altura que o
cheiro a carne-assada invadia todos os seus compartimentos desde o quarto até à
dispensa.
Dizia-se por lá que a palavra da mãe
Responsabilidade valia como escritura.
Amada por muitos, sobretudo aqueles que lhe batiam à porta em grande aflição e,
se mais não levassem, carregariam consigo uma palestra de consolo, embrulhada
em papel de esperança. Por outros, na penumbra do diz-que-disse, era odiada pela constante sombra de afirmação projectada
nos cantos e recantos do lugar. Por estes era apelidada de ditadora, fascista,
e seguidora da doutrina autoritária –embora não se lhe fossem conhecidas ligações
à política.
A Responsabilidade tinha uma filha linda, tão linda que as andorinhas
na Primavera, quando regressavam da longa viagem das terras quentes, antes de se
instalarem nos beirais em redor vinham pedir a bênção à menina dos cabelos de
madeixas douradas. A cachopa, na mesma descendência da mãe, era comedida no
trato e rigorosa no cumprimento da palavra proferida.
Outra muito conhecida na povoação
era a família Facilidade. Esta, com
assento na madre, era o oposto da Responsabilidade,
em vez do ensimesmamento sorumbático era a alegria renascida em Sol de
primavera. Conhecida pela forma ligeira como tudo encarava na vida, nos
negócios e nas relações interpessoais, era muito convidada para as escamisadas,
e malhar das espigas de milho e calcar das uvas em Setembro. Todos sabiam que
para esta gente os dias eram folhas secas de calendário para arrancar e jogar
fora e para viver a jornada de hoje melhor do que a que passou anteriormente. O
compromisso era um mero expediente para alcançar um fim e para não se levar em
conta “porque a vida é curta e não se
sabe nunca quando acaba”, costumava dizer mamã Facilidade. Como não poderia deixar de ser, os filhos desta geração,
muito perto da dúzia necessária para uma equipa de futebol, eram todos muito
engraçados, de sorriso fácil e a cair para o valdevinos.
O ACASALAMENTO
A família
Responsabilidade, como já vimos, tinha uma única filha que era um encanto para
os olhos de qualquer homem com as hormonas a saltitar. Apesar do grande cuidado
no acesso à rapariga, com protecção cerrada da matriarca -e do patriarca que
para aqui não reza para a história- a blindagem foi cortada. Um dos filhos da Facilidade, depois de lhe arrastar a asa, acabou enrolado com a
pequena e, para grande escândalo, acabou muito prenha de trigémeos.
O tempo foi passando e chegamos
ao ano de 1974. Por esta altura, da família Responsabilidade
já pouco restava do seu ADN primário. De cruzamento em cruzamento a Facilidade já tinha arrumado a Responsabilidade e, numa identidade
matizada, tomado conta da localidade. Na sua pacatez de modorra nada quebrava a
rotina do povoamento… a não ser um parto que se adivinhava próximo de uma
família recém-formada entre as duas maiores da terra. E no dia 25 de Abril, de
uma paridela assistida, sem dor nem derramamento de sangue para além do envolvimento
do cordão umbilical, em grito celestial, nasceu a Liberdade. Era um bebé tão gracioso e rosado que lhe chamaram cravo
vermelho. Foi uma festa enorme na aldeia
dos cansados. Uma revolução,
assim apelidada na época. E até houve quem lhe chamasse milagre. É que, de um momento
para o outro, todos ganharam vontade de trabalhar na reconstrução do velho
aldeamento. Foi assim uma espécie de nuvem colorida, a cair para o metafísico, que
caiu sobre aquele lugar. Com a Facilidade
a tomar a consanguinidade em toda a sua plenitude, sem olhar a custos e com
muita pompa e mais circunstância, abriu um grande polivalente desportivo, uma
escola e até um posto médico. E casas novas deram à luz e outras velhas foram
reconstruídas. E até os mariolas, que nenhuma mulher passava cartão, ganharam
olhares de satisfação. O amor andava no ar e mais Liberdades nasceram e deram mais vida e cor à aldeola.
Hoje, passados quarenta anos, da
velha estirpe Responsabilidade já
poucos se lembram. Se não fossem as placas toponímicas nos becos e ruelas e o
casario abandonado, o seu apagamento seria total –se bem que os mais novos, os
jovens, desconhecem completamente a importância que a Responsabilidade teve na aldeia
dos cansados. Só na mercearia, da família Saudade –que ainda vai resistindo mas não se sabe até quando- a
história de quem fez história se vai lembrando aos poucos fregueses que ousam
romper o silêncio sepulcral desta velha catedral do desaparecido Deve e Haver.
1 comentário:
Amigo:
Li.
É tão bom quando a leitura nos deixa saciados!
Afinal ainda há quem fala, ou lavra a verdade! E que maneira singela foi usada para o fazer.
Sempre defendi que o bom que à mistura havia com o mau deveria ter sido não só defendido como dilatado. Mas não, cegámos tudo e quisemos fazer com joio o nosso pão.
Até quando?
Ai, se quando nasceu a Liberdade tivesse aparecido alguém que honrando a memória da sua avó fosse capaz de a educar e lhe mostrar o caminho, aproveitando a euforia de um povo que tinha despertado e tudo parecia querer mudar e reconstruir!
Valhe-nos o espevitado sol e o clima ameno, laurea nossa como se fosse indulto.
Um abraço do Mondego saudoso
Álvaro José da Silva Pratas Leitão
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