São nove e meia da manhã. Muitas lojas ainda
estão encerradas e a Baixa, tal como os raios solares, começa a espreguiçar-se
para ganhar alento para mais um dia. No Largo da Freiria, para não variar do
antecedente, o lixo está espalhado num raio de um metro da papeleira. Um cão
negro olha para um lado olha para outro, mergulha o focinho na massa fedorenta e,
com as patas, mexe e remexe no entulho. Suponho que, fazendo-se substituir aos
humanos que tem essa função atribuída, procura obsessivamente um qualquer
endereço que remeta para o porcalhão, ou porcalhona, que gozando com ele e com
todos nós, diariamente ali coloca os detritos. Tento estabelecer diálogo com o
bicho mas, sei lá porquê, olha para mim fixamente, não me passa cartão, suponho
que seja político –assim a parecer o outro: “você não manda nada!”- e, num
desprezo total pela minha pessoa vira-me as costas. Não é por nada, mas
apeteceu-me morder-lhe –já que não o posso fazer no biltre que me presenteia
com entulho.
A seguir um parvo qualquer, que
me pareceu conhecer de vista, vai apanhar o lixo para dentro de um saco. É
mesmo palerma, o gajo que vai tratar de manter o meio-ambiente agradável.
Tentei também obter uma declaração do animal de duas patas mas, como a provar
que tenho de me enfiar na concha, nada disse.
A vinte metros do Largo da
Freiria, na Rua da Fornalhinha, o cenário é parecido ou talvez pior. Não se via
por lá nenhum fiscal negro de quatro patas. Suponho que, como é um panorama
recorrente, não haverá garras a medir para esgravatar em tantos
resquícios de uma sociedade em frangalhos. Enquanto procuro alguém para me
fazer uma declaração que me ajude a salvar esta crónica, vem um comerciante e
diz: “não mexa aí! Não apanhe o lixo! Já
liguei para a Câmara! Sempre quero ver quando vem alguém apanhar essa vergonha.
Esse lixo saiu, com certeza, do prédio à sua frente. Volta e meia fazem isto!
Acho que são uns rapazes novos!”.
Cerca das 11h20 veio um funcionário da Recolte
–a empresa a quem foi concessionado o serviço de pequenas limpezas na via
pública- levantar a esterqueira. Eu não percebo nada de nada, nem mando seja lá
o que for, mas tenho uma certa racionalidade lógica e, no meu pensar, digo para
mim, sem que ninguém ouça, que se mandasse isto acabava rapidamente. Bastaria
aplicar meia dúzia de coimas aos prevaricadores que este abuso acabava
rapidamente. Bem sei que isto, em período de eleições é muito chato, assim a
cair para o aborrecido, e o transgressor pode ficar incomodado e depois não vai
votar no Costa. Entendo perfeitamente isto. Quem não sabe ser caixeiro fecha a
loja. Mas então, façamos alguma coisa mais simples: todos os dias, logo de
manhã, abram-se as portas do canil e mandem-se para a Baixa duas dúzias de
farejadores de quatro patas para compor o ramalhete e aproveitar os resquícios
alimentares. É que, pelo menos, não se perde tudo.
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