Neste último Sábado realizou-se mais uma “Noite Branca” promovida pela APBC,
Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra. Eu estive encerrado. Pelos vistos só
menos de uma dúzia de lojas comerciais estiveram abertas. Embora já escrevesse
bastantes crónicas sobre este assunto, parecendo que estou a desabafar para o
boneco –por que mesmo que alguns leitores leiam, o seu efeito de influência é
pouco mais do que nada. Confesso, nem será de admirar, até a mim me maça estar
sempre a malhar no mesmo. Podemos interrogar, se me aborrece plasmar mais do
mesmo, porque continuo e, mais uma vez, cá estou a bater em ferro frio? Volto a
escrever porque há muita gente que, sem saber o que diz, sem ter qualquer conhecimento
de causa, debita “soundbyte” como se
fosse um “expert” na matéria. Bater
nos comerciantes, culpá-los da destruição do comércio de rua, tornou-se um novo
desporto nacional. Bate o funcionário
público que, com um horário principesco e um salário garantido no fim do
mês, de peito cheio acha que os vendedores são mandriões. Bate o cliente ocasional –o freguês fidelizado desapareceu-, porque há muito que abandonou a zona
histórica e apenas volta, passados meses senão anos, pela saudade ou porque
necessita de um produto que não encontra em mais lado algum. A ligação entre o
consumidor e o comerciante, num esmifrar
até ao tutano, está transfigurada em irregulares nos campos do abuso moral e
ético. Se historicamente um comprador, numa relação bilateral, foi sempre a
parte forte, aquele que tem o dinheiro, e o que está sempre à espera de
perceber uma fragilidade do vendedor para se aproveitar e fazer baixar o preço,
agora, o consumidor habitual do comércio tradicional, sabendo da debilidade do mercador,
está transformado num “abutre”. Só
não come o vendedor vivo porque é difícil. Bate
o político local no comerciante, porque precisa de desviar a atenção para
os seus erros cometidos e para que a responsabilidade que lhe cabe no extermínio
da classe pelos sucessivos licenciamentos de grandes áreas comerciais e pelo abandono
a que votou os centros históricos das cidades. Bate o governo nacional nos comerciantes através de sucessivos
impostos de confisco, tratando uma pequena “chafarica”
de igual modo a um grande empreendimento, o que leva a que uma pequeníssima
actividade empresarial seja cada vez mais de substituição. Em substituição pelo
desaparecimento brutal de estabelecimentos mais antigos, que passaram de
definitivos a provisórios em experiências sucessivas de seis meses de duração;
em substituição por o comércio se transformar em porto de confluência de todas
as profissões mais díspares.
De salientar que entre todos os entes
relacionais há um sentimento comum: uma profunda hipocrisia. Todos fingem que
estão muito preocupados com o estado caótico e de empobrecimento do comerciante
tradicional. O curioso, e isto até seria caso para estudo, é que o próprio
operador comercial também faz de conta que está tudo bem. Mesmo sabendo que
está entregue aos bichos, a uma sorte macaca, e que não tem nenhuma entidade
que o defenda, e que a sua existência é cada vez mais a prazo curto, sorri com
indolência de braços caídos e quando interrogado como está a sua vida comercial
responde laconicamente que está tudo bem!
PROVOCAÇÃO OU DESCARTE?
É sabido que o conceito “Noites Brancas” –que consiste em prolongar os estabelecimentos
abertos até à meia-noite- está esgotado. Na generalidade têm sido realizadas à
sexta-feira e, salvo a das “Marchas
Populares”, para os comerciantes não resulta economicamente e, por isso
mesmo, não aderem à iniciativa. Na antepenúltima, que se realizou na sexta-feira
de 24 de Abril, estiveram menos de uma dúzia de lojas abertas na Baixa. Pode
interrogar-se: porque não aderem os comerciantes? Porque, tirando as noites das
Marchas Populares, nas outras nunca vendem nada. Ora numa altura em que
qualquer custo tem de ser avaliado, tudo faz mossa, esta é uma razão pela não
adesão. Por outro lado, nos últimos anos, estas noites têm vindo a privilegiar
a hotelaria. É muito fácil dizer que os
comerciantes não aderem às iniciativas, mas só quem está dentro da barraca sabe
o que lá se passa.
Ora, se sabendo antecipadamente que
as “Noites Brancas” produzidas à
sexta-feira não funcionam, por que se persiste em fazer estas iniciativas ao
Sábado? É preciso esclarecer que já anteriormente se experimentou e nunca teve
sucesso. Volto a interrogar: por que se teima? Será para mostrar o lado menos participativo
dos comerciantes e colocá-los na boca da opinião pública como os desinteressados
de uma iniciativa inovadora? Ou seja, mostrar que têm uma entidade que se
preocupa com a revitalização da Baixa e eles, homens de comércio, não querem
saber?
E POR QUE NÃO QUEREM
SABER?
Em analogia, o comerciante tradicional está
para Portugal como os gregos estão para a Europa. No vulgo, são considerados
anacrónicos, que não se conseguem adaptar aos novos tempos, e que habituados a
um estatuto perdido querem continuar na mesma vida que sempre levaram. Se, de
facto, há alguma coisa de verdade, tomar a amostra pelo todo é ver o Sol através da peneira. Os comerciantes
de rua, atacados por todos os lados pelo poder político-partidário,
governamental e local, que fizeram deles uma espécie de bombo da festa e o desprezou no respeito que lhe era devido e nos
direitos de sobrevivência a que tinha direito –no abandono dos centros
históricos e que levou à desertificação-, carregando-lhe em impostos e taxas e
fazendo deles uma segunda versão do burro espanhol –que, para poupar na comida, se
estatela ao comprido e, perante a estupefacção do interesseiro, morre silenciosamente.
OS COMERCIANTES VELHOS
E OS OUTROS
Poderemos dividir os comerciantes em dois
grupos: os velhos e os novos. Salvo poucas excepções, o comerciante
velho é um ser amargurado e profundamente deprimido. Sem força anímica,
perdeu a vontade de alterar seja o que for como, por exemplo, uma simples
montra. Sem fé no presente, perdeu a esperança que move o homem em direção ao
futuro e sente o seu definhamento a cada momento que passa. Como velhinho
cansado pela marca do tempo, arrasta-se pelo decorrer das horas do dia e, sem
conseguir pregar olho, num pesadelo indescritível, vira-se e revira-se pelo tique-taque
das batidas do relógio durante a noite. Estes negociantes velhos, a trabalhar
desde criança, vêem-se num momento de angústia sem precedentes. Muitos com
idade avançada, alguns com funcionários com décadas ao serviço da firma e sem
dinheiro para pagar indemnizações e, para piorar, presos a estoques cujo Estado
lhes exige a devolução do IVA pago e descontado na altura da compra do produto,
estão presos numa armadilha sem saída possível e em que só lhes restam dois
caminhos: a insolvência particular e da empresa ou o suicídio. O resultado do
trabalho de uma vida, as poupanças, o prédio comprado a prestações de suor e
lágrimas, vêem ir tudo embora, “vendado” por “tuta e meia”, por água abaixo.
Os comerciantes novos,
trazidos pelos ventos do desemprego, pela moda do empreendedorismo, carregados
de um aventureirismo próprio de quem entra numa profissão sem conhecimento e
prenhe de um optimismo exacerbado e sem limites, chegados ao pragmatismo da
realidade, depressa estão a culpar as estrelas da sua má-opção. Mergulhados na
massa disforme da excessiva oferta, só então se apercebem que qualquer
projecto, comercial, industrial ou de prestação de serviços, só vinga ou sobrevive
pela carência do consumidor a que se destina. Nestes tempos esquisitos, não
bastam sonhos cor-de-rosa, conceitos especiais de missões que visam transformar
o mundo dos negócios. Se por um lado não está tudo inventado, por outro, o que
surge na comunicação social é tudo demasiadamente empolado numa aura de positivismo
infantil. O resultado do arriscar, do entrar de cabeça num aparente lago sereno,
onde tudo parecia tão fácil, é o sair endividado até às orelhas, carcomido pela
culpa e inevitável irresponsabilidade que vai ter consequências no destino de
cada um.
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