sexta-feira, 12 de julho de 2013

O OLHAR DO GATO PERSA


 Dentro da montra daquela que já foi a maior universidade livre do comércio da Baixa, o felino, de pêlo bem tratado e a parecer um gato de peluche, olha para quem passa com desdém. Os seus olhos, frios e petrificados no vazio, parecem avaliar tudo em seu redor. Uma pequena fresta muito estreita na principal porta de entrada indica que sai quando quiser. Notoriamente, pelo ar descansado em pose, sente-se dono de todo aquele território imenso e abandonado pelos homens. Afinal ali tem tudo o que um gato precisa; espaço para fazer umas caminhadas ao entardecer, em completa segurança, porque caminhar em beirais e outros tais, já foi. Isso foi noutros tempos. Pensa para si mesmo –porque gato também pensa, não esqueçam. Hoje com a segurança protecional aos felinos, dada pelos humanos, não vale a pena arriscar. Gente de todos os quadrantes trazem tudo, a paparoca – já nem é preciso correr atrás dos ratos-, água, vitaminas, e até umas vacinas para evitar a multiplicação da espécie. Às vezes, quando, no intervalo de uma boa leitura, tira um tempo para reflectir, dá por si a questionar o que se passa com o pessoal de duas patas. Será que enlouqueceram? Não ligam patavina aos congéneres da mesma espécie; nem um olhar de comiseração lhe dispensam, mas para nós, irracionais, é tudo em grande. Para além da Sociedade Protectora dos Animais, já arranjaram mais uma associação cá na cidade. Não deixa de ser estranho, confesso, nós não pedimos nada e dão-nos tudo. Por acaso, falo por mim, não tenho aspirações políticas, porque se tivesse, com este paparicar em forma de assédio, facilmente chegava à cadeira do mayor. Até era giro. Já imaginaram um gato como eu, de grandes bigodaças, chapéu na cabeça, e grandes botas de cano, a mandar nestes humanos tolos? Não se admirem. Já estive mais longe. Um dia destes até fundam a Universidade Felina. Em contrapartida, as pessoas passam a vida de braço no ar  a reivindicar tudo nas ruas e não levam nada. Para além de ninguém lhes passar cartão, ainda lhes retiram o que conseguiram nas últimas décadas. Muitas vezes penso que esta gente anda toda doida. Qualquer dia, no Código Penal, vale mais a vida de um gato do que a de uma pessoa. Este pessoal não sabe o que nos há-de fazer. Isto às tantas é carência de afecto, sei lá! A solidão invadiu o coração de todas estas pessoas. Todos tentam sorrir a fingir que são felizes, mas eu sei que não são. O sofrimento é imenso. Ainda bem que a dor não tem cor. Se tivesse éramos todos africanos. Só eu sei quantas lágrimas choradas me apercebo nas tantas casas que visito.
Mas deixem-me dizer,  isto aqui tem umas vistas magníficas sobre a rua e a praça em frente. Se não fosse pela passagem estreita de acesso, traria uma cadeira de balouço, um charuto havano e colocava uns óculos pretos nos meus olhos. Mais, até tem um lago na cave. Isto é simplesmente espectacular. Quando me lembro que os meus pais –o Felício e a Isménia, eram muito pobres coitados, creio que vocês não devem ter conhecido- durante décadas nunca tiveram acesso a esta outrora grande loja. Se me vissem agora, aqui, nestas minhas férias, nem iam acreditar. Até tenho pena deles, palavra de gato. O que eles passaram para fazer de mim um felino culto e trabalhador. Saiu-lhe tudo furado. Culto sou pouco, trabalhador muito menos. Mas como é que eu podia ser trabalhador? Basta lembrar-me dos velhotes sempre esfalfados e estafados, de telhado em telhado, em busca do sustento para mim e para os meus irmãos. Ora o que aconteceu? O meu pai, o Felício, deu uma queda brutal do alçado do prédio do senhor Zacarias e estatelou-se na calçada –foi nitidamente um acidente de trabalho, mas pensam que a minha mãe, a Isménia, recebeu alguma coisa? É o recebes! Nessa altura não havia este proteccionismo todo à volta da minha classe que hoje assistimos. Passado pouco tempo, a minha progenitora bateu também a caçoleta. Coitada! Não aguentou a solidão e o esforço dobrado. Ora, está de ver que o trabalho mata. Sendo assim, seguir os seus passos, só se eu fosse um jumento. Acontece que sou gato. Esta vida é uma maravilha!

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