LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "REFLEXÃO: ACICATAR", deixo também as crónicas "UMA SEXTA-FEIRA NEGRA... DEPOIS DE AZUL"; "A ÚLTIMA GRANDE VIAGEM DO MAGALHÃES"; e "PATRIMÓNIO DA DESUMANIDADE".
REFLEXÃO: ACICATAR
O Diário as Beiras do último dia
9 falava disto mesmo em título. “ACIC ameaçada por penhoras vê os seus
funcionários pedirem rescisão de contratos”. Para quem não souber ACIC é a
sigla de Associação Comercial e Industrial de Coimbra. Está na falência. E depois?
Interrogamos. O problema, ainda que gravíssimo para os seus credores, é que a
sua direção faz lembrar o filme Titanic.
Enquanto o barco se afunda o comandante e a tripulação, para ofuscarem o
desastre eminente, dançam alegremente no salão. Só assim se pode entender com
os consecutivos concursos de vinhos medalhados a ouro e muita hipocrisia dos
convidados.
UMA SEXTA-FEIRA NEGRA… DEPOIS DE AZUL
Encerrou a semana passada o
restaurante Blue Friday Club, no Edifício horizonte, ao fundo da Rua
Direita. Vinte meses depois, passando por cima de um investimento avultado, e
de um sonho gorado, este estabelecimento de hotelaria claudicou. Para além dos
patrões, pelo menos quatro funcionários foram para o desemprego.
Em Outubro de 2012, em entrevista
para o blogue, o proprietário investidor capitalista, na altura em sociedade
com um sócio trabalhador, quando lhe perguntei se acreditava na regeneração da
Baixa, retorquiu assim sem pestanejar: “não tenho dúvida! Esta vai ser a zona
do futuro. Aqui está o amanhã dos nossos filhos!”
Como salvaguarda, ultimamente
várias pessoas se me tem dirigido a criticarem o facto de os meus escritos
serem muito “carregados de dor”, demasiadamente pouco otimistas. Estou a
lembrar-me de uma minha amiga que vai abrir um negócio proximamente e, perante
os meus alertas de muito cuidado, me
replicava: “Bolas, senhor Luís! O senhor
está muito pessimista! Temos de ter esperança!”
Entendo perfeitamente o facto de partimos
para uma aventura cheios de força. O mal seria se estivéssemos derrotados logo
a começar, mas, diz o povo, cuidados e
caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Também é verdade que me
sinto sem alento e com pouquíssima fé no futuro desta Baixa –confesso que sim,
também e sobretudo, derivado a alguns problemas familiares que atravesso e,
juntando ao que assisto à minha volta, mantenho-me quase sem forças. Juntando
tudo, quando assim acontece, não há otimismo que resista.
Cada vez mais é necessária
temperança nas pessoas que, investindo o que têm e não têm, legitimamente
procuram ganhar a vida com dignidade. Estou farto de escrever textos a chamar
atenção para este facto. Estão acontecer falências demais aqui no Centro
Histórico. Jovens e pessoas de meia-idade que apostaram tudo numa única cartada
e, como gelo que se transforma em água, veem a sua vida ir para o charco. Ainda
a semana passada escrevi aqui uma crónica sobre os maus investimentos que estão
acontecer nesta zona. São feitos sem pensar nas consequências futuras. Em parte
por uma ignorância assente em falsos pressupostos, não olham à renda e aos
custos fixos dos projectos que pretendem encetar. As tragédias estão à vista de
todos. Para além de uma notória omissão de quem deveria aconselhar estas
pessoas, há muita irresponsabilidade por parte de quem está a abrir um
estabelecimento.
Apenas como exemplo, e para
melhor se entender, vou voltar ao Blue
Friday Club –e vou tentar não parecer um moralista armado em sabichão. Há
cerca de 18 meses, segundo me contou na altura o empresário, a renda andava
muito próximo de 3000 euros mensais –sei que atualmente, num ato de boa-vontade
do senhorio que viu o desastre antecipadamente, o montante já estava em pouco
mais do que 1000 euros. Mais ainda, foi-me dito também na altura pelo gerente
do restaurante que haviam sido gastos cerca de 100 mil euros na decoração do
estabelecimento. Que me perdoe o senhor, mas coisas destas não podem acontecer;
são demasiadamente levianas para
ocorrerem. Mais ainda, terá lógica criar um restaurante, com uma apresentação
fantástica e com uma área fora do comum, numa zona decrépita, com prédios a
cair, e onde os toxicómanos, agora mais do que nunca, estão a dar imensos
problemas a toda a zona envolvente com assaltos nocturnos a pessoas e bens? No
limite, se calhar, até fará sentido uma casa destas, outras e outras mais, numa
zona degradada. Mas, para isso, seria preciso que vivêssemos numa cidade, de um
país, preocupada com quem investe e tudo aposta. Acontece que não é assim,
todos falam na criação de emprego, mas apoio verdadeiro, em assessoria técnica,
informação e desoneração de impostos para pequeníssimas empresas, não há. Os
resultados estão ao virar da esquina.
E mais ainda: por mais culpas, na
negligência, que se atribuam aos que tentam abrir um negócio, o Estado, essencialmente
ao não garantir o cumprimento da segurança pública que deveria estar obrigado,
está a ser o coveiro destes pequenos empresários. Até quando?
A ÚLTIMA GRANDE VIAGEM DO MAGALHÃES
Nesta última terça-feira foi a
enterrar o Manuel Magalhães, da desaparecida Sapataria Reis, na Rua Eduardo
Coelho e com frente para o Largo da Freiria. Com 74 anos, sei que há pouco
tempo tinha sido intervencionado nos Hospitais da Universidade e, devido à
Diabetes, teria sofrido a amputação de uma perna.
O “Manel” da Sapataria Reis, como
era carinhosamente conhecido por aqui, pela Baixa, com muito pesar, faz parte
de um leque de profissionais que trabalharam toda a vida no comércio –em
criança, entraram sem nada e saem de mãos vazias- e, devido a várias peripécias
–sobretudo, pelas políticas destrutivas e de abandono a que a venda tradicional
foi votada- acabam muito mal. Pelo respeito que este meu vizinho sempre me mereceu
não devo aprofundar mais esta análise. Mas é com uma imensa revolta que, mais
uma vez, com tristeza, vejo um homem que se dedicou completamente, com alma e
coração, a comerciar -mais um caso, entre tantos, infelizmente- partir sem
orgulho e sem glória.
Para além de ter sido
comerciante, o Magalhães foi um grande atleta do Sporting Nacional, hoje ainda
com instalações decrépitas no Largo da Freiria. Para quem o conheceu bem fica a
saudade da sua sapataria Reis aberta ao público, a sua própria projeção
–repare-se que após dois anos do fecho do estabelecimento o “Manel” desistiu
também de viver- e a quem dedicou toda a sua existência. Fica a recordação de
tantos jogos de moeda que numa vozearia efervescente, em “uma… três… cinco”,
ecoavam em redor do Largo da Freiria. Se na altura, para muitos, aqueles gritos
eram inapropriados, para mim, sempre foram apanágio de vida, símbolos de uma
cidade que, através do pregão e destas manifestações, recusava morrer. Com a
viagem do Magalhães a antiga rua dos Sapateiros fica mais sozinha e em
silêncio; com a sua partida vai-se um pouco de nós; memórias de um tempo que,
tal como ele, não voltará mais.
À sua família, nesta hora de
incomensurável dor, um grande abraço de solidariedade. Nós, vivos, colegas
comerciantes e muitos amigos, que por cá caminhamos ainda até um dia, fazemos
votos para que o “nosso Manel” finalmente descanse em paz.
PATRIMÓNIO DA DESUMANIDADE
São 10h00, nesta última segunda-feira dia de todos os
homens, acabadinhas de bater na torre sineira da vetusta Igreja de Santa Cruz.
A Praça 8 de Maio, onde está implantado este templo construído no princípio da
nacionalidade e edifício arquitetónico dos mais importantes de Coimbra, está a
começar a espreguiçar-se e a abalançar-se para o começo de um novo dia. O sol,
luz ante luz, vai crescendo a abocanhar
todos os recantos ensombrados.
Como malandro que usa e abusa do
aforismo “vale mais quem Deus ajuda do
que quem muito madruga”, esta parte da cidade começa a trabalhar tarde e
vai para a cama cedo, como as galinhas. O movimento de passantes é ainda
incipiente. Como é hábito, os poluidores
de esquinas e do chão com cascas de amendoim, trabalhadores incansáveis,
são os primeiros a assentar arraiais no antigo adro. Um velho comerciante, passa
em frente à catedral. Para por segundos, faz o sinal da cruz sobre o peito e,
hesitante entre penetrar na casa de Deus e Panteão Nacional sarcófago dos
nossos primeiros Reis ou continuar em peregrinação para a sua loja a acreditar
num bom negócio -que há-de surgir como milagre, se Deus Nosso Senhor quiser-, acaba
a prosseguir o seu caminho. É possível que a sua escolha na vontade não fosse
feita totalmente de forma racional. Provavelmente o grande furgon, de cor amarela das batatas fritas Lay’s, que, em presuntiva provocação ambiental, estava estacionado
em frente e assombrava a reputação e quietude do memorial histórico, tivesse
responsabilidade na opção do reputado homem de negócio. Mas também não ligou
muito ao monstro de ferro que de forma abusiva e intrusiva barrava o seu olhar.
Comerciante, mesmo com disponibilidade, agora mais do que nunca, não tem vagar para
pensar em mais nada a não ser na sua salvação; a profissional, na razão de que
está cada vez mais difícil aguentar; a terrena, porque o tempo já escasseia e
está no epílogo da vida; e a eterna, porque, vale mais acautelar, não vá depois
o Criador, como juiz parcial e tendencioso, ajustar contas e levar à letra tudo
o que de menos bom se fez por cá.
Nas ruas estreitas o lixo, como
monumento ao desperdício, apatia e deixa correr de um citadino e parte de um
povo que não tem emenda a não ser pela coima, amontoava-se em tudo quanto era
ruela, beco e viela estreita. Incluindo os mandatados para a responsabilidade
da função, poucos se importam com esta afronta visual. Num estranho serviço,
quase em contraposição, o Abílio, funcionário camarário, como jumento que puxa uma
carroça, estava feito um humano transformado em máquina que se limita a fazer a
sua programação diária. Num barulho prolongado, de zooonnn, arrastava o enorme aspirador em busca de beatas e papelinhos
deixados por transeuntes mal formados e sem educação que ninguém em tempo útil
ensinou e agora já é tarde. Disto tudo, deste marasmo conspirativo, não se saberá
o que pensaria o funcionário desta surpreendente tarefa de recolher partículas no
chão da calçada quando estava rodeado de entulho grosso abandonado –e será que
a maioria admite que o homem que recolhe lixo até pensa como gente? Nesta
sociedade formada por estereótipos e quadros discriminatórios lá imaginará que
o Abílio, para além da sua função rotineira, também tem cérebro e vida como
qualquer um de nós? Para muitos, uma pessoa apenas vale pela gravata que usa e
pelo lugar estatutário que ocupa. É assim como avaliar um livro, na sua
história e escrita, pelo nome sonante do autor e pela capa.
Mas, agora me lembro, eu estava a
escrever sobre a Baixa e a sua recente classificação de material Património
Mundial. Porque será que descambei na imaterial desumanidade? Nem sei bem. Às
tantas, estes mentais desvios disfuncionais terão a ver com a vaga de calor que
nos assola. É a canícula! É a canícula!
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