Antes de entrar no assunto que
leva escrever esta crónica, como primeira ressalva, vem-me à ideia as
permanentes chamadas de atenção da minha falecida mãe: “ai Toino, Toino! Vês
sempre tudo ao contrário. És um tolo, rapaz!”. Ela tinha razão. Às vezes tenho
alguma dificuldade em aferir a bondade de certas iniciativas que se fazem em
Coimbra, e mais propriamente nesta zona velha. O problema é que vejo toda a gente
a aplaudir e, em solilóquio com meus sapatos gastos e cansados de tanto
calcorrear sendas e veredas, dou por mim a duvidar da minha própria avaliação.
Poderia elencar aqui meia dúzia de exemplos, mas, para já, vou apenas
debruçar-me sobre uma iniciativa que está patente em vários pontos da cidade e até
ao fim do mês.
Pelo que se vê em algumas zonas,
incluindo a Rua Direita e a Rua Fernandes Tomás, na Baixa, está a decorrer,
durante este mês de julho, o primeiro Festival de Croché Social. Segundo o
Diário de Coimbra, de 5 do corrente, “a iniciativa pretende embelezar vários
pontos da cidade com trabalhos em croché feitos por utentes de 40 instituições
e associações de solidariedade social da cidade. O talento e a criatividade dos
mais idosos preenchem agora de croché as árvores, as rotundas, os postes e até
um autocarro do Ateneu de Coimbra (…)”.
Com toda a franqueza, começo por
pedir desculpa aos promotores desta acção. Tenho a certeza de que a
desencadearam com a melhor das intenções. Porém, quando passo junto à Câmara Municipal,
ou na rotunda dos HUC, e vejo aqueles pinos forrados com crochet, feito com
tanto amor por alguém mais velho do que eu, completamente desbotado, a estorricar ao Sol, como roupa a corar esquecida
na eira, fico apreensivo e questiono a positividade da ideia. Pressinto ali uma
falta de lógica, uma relação desproporcional entre a causa e o efeito. Uma enorme
sensação de desperdício de recursos. Não sei bem se conseguirei ser claro, mas
vou tentar analisar esta iniciativa sobre uma única vertente: o trabalho.
Começando então pelo trabalho, poderemos defini-lo como
actividade física ou psíquica, feita por humano, cuja intenção, objecto, é
realizar, transformar, ocupar o tempo, considerando que o ócio, para além do
necessário, leva ao definhamento mental e é nocivo à criação intelectual do
homem. É ponto assente que o trabalho,
enquanto função, deve ser proactivo e dignificar a pessoa. Daí se continuar no eterno
conflito em saber se deveremos considerar a prostituição uma profissão
reconhecida e relevada socialmente –um dia, não se sabe quando, talvez quando
cair a máscara da hipocrisia, vai ter de se decidir. Enquanto se pensa e
repensa, entre o sim, o não e o talvez, as prostitutas, como Madalenas
condenadas pela história, num limbo de ostracismo, continuam sem qualquer
protecção social e a serem espancadas por canalhas sem escrúpulos. Continuando
na minha narrativa, é também acordado que todo o labor deve ter acoplado uma
retribuição: monetária, enquanto
acção individual e fonte de rendimento; de
utilidade colectiva, pro bono, implicando,
pela sua gratuitidade, o correspondente reconhecimento público; prazenteiro, individual, imbricado na
satisfação pessoal, e projectado na ocupação e na criação.
Depois destas alegações, poderemos
então considerar trabalho este
resultado material de um universo de pessoas idosas e carenciadas, no tecer
manualmente centenas de metros de bordados? Sim, podemos –penso que não há dúvida.
O que me gera alguma intranquilidade é o chamado efeito placebo, o fazer crer a alguém carecente de que o resultado da
acção implica melhoramento do seu estado, físico ou anímico. E escrevo isto
tendo em conta que, provavelmente, o fim que se espera para estas obras deverá
ser um qualquer recanto esquecido ou o lixo. Será que o produto do seu labor esforçado,
tendo em conta o seu ideal de decorar a cidade durante um mês, é bastante e dignifica
toda a entrega e dedicação dos autores obreiros? Bom, se calhar, só eles
poderão responder. Aparentemente, pelas suas manifestações de contentamento na
televisão, assim parece. Mas, levando à letra que são utentes de instituições
de carácter social, marcadamente com suas diferenças, será que não estamos
implicitamente a desvalorizar o seu empenho?
Bem sei que a questão não é
pacífica, é que, comparando, podemos ser transportados para outros lugares com ruas
ornamentadas com flores de papel e chãos atapetados com pétalas de rosas em
festas alegóricas. Mas, a meu ver, neste caso, são utilizados materiais
perecíveis. Ou seja há uma relação directa entre o nascimento e morte, uma
temporalidade entre a criação, o definhar e o perecimento. Não será o caso do
crochet –como todos sabemos, é uma arte laboral ancestral, passada de mães para
filhas, cuja utilidade, de longa duração, assentava essencialmente nas
dificuldades financeiras da família, pela carestia da vida. Este vício familiar, rural e urbano, desapareceu
pela desvalorização acentuada dos têxteis e por outras ofertas de ocupação dos tempos livres.
As razões que sempre lhe estiveram subjacentes, assentes na necessidade,
deixaram de existir.
Enquanto homenagem a um costume
familiar em vias de desaparecimento foi uma boa forma de chamar a atenção?
Deixo a resposta a quem me ler.
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