Pelo Sol, a pique, com pujança e
muita cagança, a picar quem ousa afrontá-lo,
a iluminar todas as barraquinhas de artesanato e comes e bebes, a Praça do Comércio, seria, por volta do meio-dia
deste Domingo, 14 de Julho, um porto de abrigo de vários desamparos. Para quem
vem em busca de algo que quebre a rotina diária, está perante um cenário de
vida cheio de cor, sons musicais, cheiros, na multiplicidade das especialidades
portuguesas que praticamente desapareceram dos restaurantes e se podem apreciar
aqui. Para quem está, nomeadamente os detentores dos pequenos espaços cedidos
pela junta de Freguesia de São Bartolomeu, há um misto de esperança nas suas
faces. Embora esta luz seja mais perceptível em quem vende géneros alimentares.
Os outros, os muitos artesãos, nos seus rostos adivinha-se uma espécie de
quietude inquieta, um esperar ansiosamente
para ver no que dá. Afinal, por outras passagens, em outras feiras do
género, todos sabem que a oferta é maior que a procura. E, em tempos de rapar os bolsos em busca de uma moeda
que escasseia, procura-se primeiro satisfazer as emergências que afligem. A
arte é cada vez mais uma necessidade, multiplicada várias vezes, para quem a produz
e um excedente desprezível para quem a detém.
Historicamente, foi neste data,
do já distante ano de 1789, que “o povo
de Paris saiu às ruas para protestar contra o regime monárquico opressor. Os
populares invadiram a Bastilha, fortaleza que simbolizava o Absolutismo real,
libertaram presos e derrubaram o prédio. O fato simboliza o início da Revolução
Francesa”. Porque cito este acontecimento histórico? Nem faço a mínima.
Provavelmente para dar uma ideia de que sou muito culto. Deve ser apenas por
isso, porque, comparando com a actualidade, nem tem qualquer similitude. Digo
eu, não sei. Às tantas até poderei estar enganado. Além de mais, hoje, dia da
Feira de Artesanato e tasquinhas típicas na Baixa, nesta hora divisória do
primeiro dia do calendário cristão, a mais antiga e típica praceta do Centro
Histórico está transformada numa espécie de plataforma de cidadãos do mundo em
trânsito. Logo a dar as boas-vindas, em frente às Escadas de São Tiago, está o
Valentino. De aspecto andrajoso, barba de muitos dias a camuflar a falta de
alguns dentes, com uma t-shirt que no passado já teria sido preta e agora um
coloreado mais ou menos híbrido e esbatido, uns calções cortados pelo joelho e
que também noutra época já foram calças. Os joelhos encardidos, as mãos muito
sujas com unhas compridas de carvão, mostram que tomar banho continua a ser um
luxo diário apenas para alguns. Nos pés umas sandálias a lembrar Pedro, o pescador. Tudo neste homem,
cidadão do mundo e em passagem por Coimbra, se mostra ser alguma coisa que já
foi. Uma sombra viva do passado que teima em prevalecer e lutar contra a força
ditatorial do tempo. Está de mãos erguidas ao Céu. Numa lengalenga sofrida em espanholês, com ar feliz de espiritualidade,
fala com Deus, já que, provavelmente será o Único que o escuta sem um queixume.
Da sua imagem pacata, caricatura de um humano que se deveria apresentar bem,
emana algo de metafísico. Depois da devida autorização, tiro-lhe uma foto e convido-o
para a minha mesa. Como animal a quem se deu um afago, conta-me toda a sua vida
de saltimbanco e vadio do mundo. “Sou
romeno, cigano, entendes? Interroga-me num português melhor que alguns
nativos cá do quintal. Vim para Portugal
com 14 anos, para Bragança. Fui apanhado e recambiado para Bucareste –conta-me
sem eu perguntar nada. Nem sei bem se deva acreditar. Tudo naquela imagem é
surreal. Ele quer apenas falar para alguém que o escute e para isso nem que
tenha de inventar. E fala, fala, fala. Já
correu o mundo inteiro em busca de coisa nenhuma. Interrompe, por momentos,
quando a Banda de Penacova, como sempre bem afinada nos sons melodiosos e bem
ritmados, invade toda a área envolvente. Desta vez, quem está a regê-la é o
Clemente, presidente da Junta de São Bartolomeu. De alma cheia, não se cansa de
apregoar: esta festa é da Junta, estão a
ouvir? Não foi a Câmara Municipal que realizou, fomos nós. É certo que apoiou,
mas o segredo está no fazer. Ah pois!?!”. E a banda, marimbando-se para quem
fica, toca, segue e avança em direcção a outra praça porque a música é a
linguagem universal do universo. Valentino, alheio a conjecturas filosóficas, retoma
o fio à meada no mesmo ponto onde
fora largado e continua a despejar o saco
das contingências e fragilidades humanas que, no ser escutado por alguém,
já não via o padeiro há muitas noites,
quem sabe meses, ou talvez anos. E chegou a hora de ir embora, Valentino, desculpa
lá! Argumentei.
Sento-me numa mesinha corrida de
uma das muitas tasquinhas que se apresentam no mais antigo largo medieval da
cidade. Ao meu lado está um casal de espanhóis de meia-idade. Uma senhora
natural destas ruas estreitas, sozinha, também já entradota naqueles anos que se preferem esquecer, mete-se com eles
na língua de Cervantes. É saliente que precisa de falar com alguém e, num misto
de vaidade, competência e solidariedade, vendo-se que se exprime bem, aproveita
para ensaiar o que já não acontecerá há algum tempo, quem sabe décadas, séculos.
E falam de Espanha, que conhece tão bem. Falam, falam. Eu escuto. São de
Sevilha, terra de maravilha, apreendo no meu “linguado” arrebanhado, já que
nunca fui um poliglota. Enquanto me atiro a um caldo verde, bem temperado, e um
arroz de feijão e pataniscas saborosos,
sentam-se ao meu lado um casal de franceses, também de meia-idade. Ambos exalam
serenidade, como se a paz fosse transportada nos seus ombros. Puxam de um pequeno
livro, dicionário de bolso. Procuram entender o que significa bacalhau com batatas a murro, pataniscas,
negalhos, bifana e pernil. Desta
vez a nossa senhora protectora de todos os estrangeiros não se atirou ao
francês falado. E o casal, a jogar às palavras no livrinho pareciam perdidos
numa encruzilhada dos Alpes. Em pensamento penso que estes turistas não fazem o
mais pequeno esforço para entenderem o que os rodeiam. E eu, que ainda há pouco
tinha mentalmente fustigado a senhora que se estava armar em princesa das
Astúrias, dei por mim a fazer o mesmo. A traduzir a boa cozinha portuguesa para
francês. Sou mesmo anedota, não sou? Sou português. Somos assim mesmo. Num
misto de servilismo e solidariedade, onde não se sabe onde acaba e começam as
fronteiras, somos mesmo assim. É o povo, pá!
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