O homem atravessou o "stand" em
passo desenvolto e em direcção ao vendedor de automóveis. Junto deste, depois
de mirar a placa identificativa, sacou da mão em riste e atirou: “boas tardes,
senhor técnico de vendas, “João Afonso”.
Era um homem alto, com cerca de
pouco mais de três dezenas de primaveras, bem-falante, e aparentava ser pessoa
simples e de poucas posses. Falava com desenvoltura. Apesar de ser notório que
escolhia as palavras, retirando-lhe alguma naturalidade, estas saíam
fluentemente e com alguma segurança. No entanto, em um segundo olhar mais perscrutador,
era perceptível uma ligeira disfunção psíquica. Algo que só um observador
inato, como um vendedor habituado a lidar com todos os quadros mentais de
clientes, poderia avaliar. “Mas -pensa Afonso com seus botões- poderia mesmo
deixar-se guiar pela sua intuição? E aquele cliente, de há uns meses atrás, que
entrou de sapatilhas, barba de muitos dias, e calças de ganga mais coçadas que
as de um mineiro nas extintas minas de Aljustrel? E que, afinal, era médico
numa cidade das redondezas e acabou por comprar um carro por mais de 40 mil
euros?”
João tem muita experiência, mas o
tempo foi indicando o caminho para classificar os humanos. Ao longo de muitos
anos de trabalho como vendedor tem visto de tudo o que uma marca mítica
automóvel pode fazer em homens e mulheres. Às vezes tem assistido a verdadeiros
orgasmos espirituais. Perante o símbolo parecem perder as defesas e derretem-se
como gelado em sol de Agosto. Tiram fotos e mais fotos; querem entrar no carro e
serem como James Dean; apertam o volante contra si e, como criança que nunca
teve o seu brinquedo, giram o volante para a esquerda e para a direita e fazem
ouvir em todo o salão: “reemm… reemm”. Do ponto de vista especulativo, é muito
interessante como a ostentação e a posse podem transformar completamente um modesto
e pacato cidadão num doidivanas sem juízo. Depois verifica-se que estes
obcecados automobilistas sabem tudo acerca da marca, sobretudo os modelos.
Constata-se que perdem noites e mais noites na Internet a analisar as novas raridades saídas da fábrica.
Afonso foi interrompido nos seus
pensamentos pela repetida interrogação do homem humilde, “o senhor João Afonso pode
dizer-me se tem o “MXY X6M", em quatro portas?”. O técnico de vendas foi
respondendo, mas aqui já tinha uma certeza: este homem não queria comprar nada.
Apenas faz da visita ao salão da marca como um viciado em heroína vistoria o
seu fornecedor. Este mesmo homem simples, que estava tanto para adquirir o
veículo como qualquer um de nós ir à Lua, já o visitara pela primeira vez há
uns meses atrás. Como é normal, e recorrente em muitos casos que já perdeu a conta,
levou catálogos. João ficou a saber que, em perfil, este pseudo-comprador não
tem emprego certo, vive com a mãe e, no verão vai para França ou Suíça
trabalhar na agricultura. Não é possuidor de qualquer carro e, para o "stand",
que dista cerca de cinco quilómetros do centro, fez-se transportar de táxi. O
vendedor, como sapiente de paciências, sabe que, durante mais de meia-hora e
até conseguir passá-lo para um colega sem ser notado, vai ter de fingir que
acredita na realização do desejo do homem simples. Não é a primeira vez que
improváveis adquirentes como este, sendo mal recebidos, expuseram ao
representante em Lisboa o seu desejo de comprar um carro até 300 mil euros.
“Sempre existiram visionários, projectados
nestas pessoas humildes, mas agora são de mais! Será da crise e dos tempos
vazios que atravessamos?” -interroga-se o vendedor em solilóquio, para si mesmo,
(Baseado em histórias reais e em declarações
de um vendedor de automóveis na cidade)
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