No princípio dos idos anos de
1960, na minha aldeia de Barrô, entre a Mealhada e o Luso, a rua principal era
em terra batida e as adjacentes eram lastradas pela lama provocada pela urina
dos animais domésticos. As cerca de três dezenas de casas, salvo meia-dúzia de propriedades
dos mais abastados e que davam trabalho na terra à maioria dos chamados “alugados”,
eram constituídas por quatro paredes de enxaimel, mistura de madeira com argamassa,
e uma cobertura paupérrima onde o sol e a chuva entravam sem pedir licença. Não
havia água canalizada; a necessária para a higiene e alimentação, era apanhada
na fonte de chafurdo, do barreiro –por um momento, em exercício mental, vale a pena
pensar como se poderia viver sem casa de banho. Lembro-me de, nessa altura, o
meu pai ter mandado construir um barracão ao fundo do quintal, com umas tábuas
e um buraco ao centro, e, para mim, ter sido uma inovação. A primeira vez que
vi uma sanita em louça foi aqui, em Coimbra, em 1966. Todos os dias, ao cair da
tarde, era ver em procissão todas as donas de casa com o seu cântaro à cabeça e
sobre uma "rodilha" de pano. Não havia energia eléctrica; a iluminação nocturna nos
casebres era apoiada por um único candeeiro a petróleo. Quando era necessário
fazer uma deslocação para os currais dos animais, por exemplo, a outra parte
ficava às escuras. Naturalmente que ali, naquele lugar perdido no mapa, não
havia comunicações telefónicas. O recurso era a carta e o postal dos correios,
isto para quem soubesse ler, porque, ali, mais de noventa por cento da
população mais velha não conhecia uma letra. Com toda a pobreza palpável a
olhos de ver, mesmo não havendo muita variedade e o recurso ser a sopa frugal,
não havia fome, tal como a conhecemos hoje. Cada habitante amanhava o seu “bocadito”,
a sua leira, e de lá retirava o seu sustento.
Apesar desta imagem acinzentada e pouco idílica, o lugar tinha muita vida. Diariamente no largo da capela uma dúzia
de crianças jogavam à bola, ao pião, ao lencinho e ao “escondidinho”, depois de
vir da escola -hoje desactivada-, que distava cerca de três quilómetros de ida e
mais igual de volta. No caminho entre a Lameira de São Pedro e o sítio as crianças
tomavam contacto com a natureza: com o sol castigador de verão de canícula; com
o silvar da cobra sinuosa a rebolar-se pela encosta; com o piar do mocho; com
as amoras encarnadas, cor de vinho, no silvado; com os ninhos de pássaros
espalhados pelo vinhedo; com os imensos formigueiros, constituídos pelos
pequenos montes de terra, com um buraco no centro, e de onde entravam e saíam
dezenas de formigas na sua azáfama empírica de trabalhadoras inveteradas.
De todas as casas, ricas ou
pobres, da sua chaminé e como puxado por um fio invisível, saía um farrapo de
fumo branco em direcção ao céu. Os ruídos na povoação, numa mistura de ópera desafinada,
eram indescritíveis. O cacarejar das galinhas fundia-se no grunhir do porco e formavam
o coro de fundo. Eram apagados pelo mugir dos bois, como tenores. No meio
destas vozes, como sopranos, apareciam as ovelhas: “meee… meee”. Os odores do
lugarejo dividiam-se entre um situacionista fétido de estrume e um milagroso
cheiro a broa cozida nos fornos de cada lar.
No rosto de cada aldeão, em
traços vincados de indisfarçável dureza de esforço, notava-se serenidade, como
se aceitassem pacificamente que o tempo ali passava muito devagar. Naqueles semblantes
impassíveis, se não havia alegria a rodos, também não havia uma tristeza
profunda e marcante. Eram felizes à sua maneira e dentro das circunstâncias
possíveis, embora fosse patente o conformismo. Não a submissão de fatalidade,
mas antes o saber aceitar, o resistir, o aguentar estoicamente sem um queixume,
as nuvens que teimavam em permanecer sobre as suas cabeças, num país esconso e
atrasado, como se quisessem castigar os seus corpos e martirizar os seus
espíritos.
As únicas distracções sociais eram, ao
domingo, as "cartadas" de sueca na loja do “senhor António” e em frente, no
terreiro da rua, os torneios de malha, ou fito. Dentro de casa, como não havia
mais nada para alimentar a alma, depois de um malhar duro na terra escura,
faziam-se filhos na noite, enquanto cá fora os grilos cantavam na lua cheia.
Hoje, passados 50 anos, como está
a minha aldeia de Barrô? Estrada principal e ruas paralelas bem atapetadas com
betão sem beliscadura; uma sinalética de fazer inveja à cidade, com cada rua
identificada com placa azul a imitar o esmaltado; casas muito bem recuperadas e
matizadas com cores vivas. No centro, a capela de São Sebastião, com a sua
torre sineira a desafiar o Universo, bem restaurada, é complemento de postal
ilustrado deste Portugal hodierno. Porém há duas lacunas que saltam à vista:
não se vê vivalma e o silêncio é sepulcral. Mais acima, o “Toino da loja” -porque
neste oceano de estatutos confusos largou a importância de outrora-, agora com
cerca de 80 anos, como soldado que perdeu a guerra mas não aceita a
implacabilidade do armistício, mantém a sua loja e taberna ainda em
funcionamento, mas sem clientes. Ele sabe que quando morrer, como irmãos
siameses, homem e estabelecimento, vão ser enterrados juntos.
Há dias pelo Governo, com o anunciado
agravamento do Imposto Municipal sobre Imóveis, em balanço geral, entre custo e
benefício, embora não seja linear a resposta, mas teria mesmo valido a pena
esta modernidade?
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