Andava eu, antes de ontem à noite, a dar uma volta mais o
meu Silvano –é o meu jerico, suponho que não devem conhecer até porque ele não
liga a qualquer um e muito menos dá entrevistas- pela Praça 8 de Maio quando
vejo passar a nossa musa encantada da Baixa, senhora de todos os momentos mágicos
de felicidade e universal linguagem musical do mundo, Emília Martins e
acompanhada do seu marido Paulo Craveiro, em direcção ao Café Santa Cruz.
Estanquei de repente, puxando as
rédeas ao Silvano, e atirei para o meu familiar não consanguíneo: espera aí!,
se a nossa diva governadora da Orquestra Clássica do Centro vai para o nossa
sala de conferências comunitária, é porque vai haver espectáculo musical! E
como as coisas estão, que nem um euro tenho para beber um café, vamos mas é
atrás deles. Nunca se sabe quando possa sair um bom concerto “à borliú”. O
Silvano é que não ficou lá muito satisfeito, mas encaminhei-o até ao largo da
Portagem, prendi-o na grade de ferro junto ao “mata-frades”, deixei-o a encher
a barriga lá na relva com a supervisão do “Jaquim” (António Aguiar) e voltei
atrás até ao melhor café da Baixa, de Portugal e de todos os mundos conhecidos.
Eram cerca de 21h30 quando transpus
a porta de entrada encimada por vitral. O Costa, o empregado de mesa a tempo
inteiro e pintor de artes plásticas nas horas que restam, mandou-me um olhar de
cima a baixo, como se me estivesse a tirar as medidas para um fato, já que a
farpela que me tapa as misérias já há muito que reivindicava substituição. Por
acaso não gostei. Ainda estive para lhe atirar, assim de rompante: ó Costa,
empresta-me aí uma nota para comprar um “fateco” e me vestir melhor! Mas
recuei. Afinal ele até me conhece bem e, às tantas, até me oferecia uma nota de
cem “aéreos” e eu não queria –que um dia destes ainda teria de lhe retribui em
texto de agradecimento. Pobrezinho sou, sim, mas muito bem-agradecido. Olhei lá
para o fundo da sala e, pela orquestra de câmara, vi logo que ia ter um bom
espectáculo de música clássica ao vivo –por momentos fui invadido por uma lágrima
de saudade. Recordei o tempo quando era rico e frequentava as grandes salas da
Europa. O que uma pessoa foi e ao que chega! –E lembrei-me das minhas solas
rotas.
Vi um pequeno panfleto em cima da
mesa; tratava-se de um encontro para debater o estado da baixa e acompanhado
com música. A sala estava a meio-gás, como quem diz, com pouca gente. Pelos
vistos o pessoal da terra não gosta nem de debates nem de acordes musicais. Até
poderemos interrogar: e gostam de quê? De remoer, dizendo mal deste e de aqueloutro,
não é?! Estava nestes meus pensamentos profundos e analíticos quando a mulher
mais bela da cidade começou a dar as boas vindas e me acordou do torpor. Ainda
olhei para trás para ver se vinha mais alguém, mas não. Seria para mim? Claro
que não. Olhei então à volta e foi então que vi o painel constituído por Vitor
Marques, Laborinho Lúcio, João Paulo Craveiro e Gonçalo Quadros. É pá!, com
gente fina é outra coisa!, pensei cá com meus botões. Então dei mais uma
varredela na sala com os olhos e, naquela pouco mais de uma dúzia de
assistentes, lá estava o Norberto Pires, o novo “enfant terrible” dos laranjas,
e muito bem acompanhado da sua Marthinha, o Cristo, o arquitecto da política
autárquica local do PSD de outros tempos, o Hélder Rodrigues, o “CEO” do Lions
Clube de Coimbra, e que conhece todo o mundo que mexe nesta Baixa. Dei uma
segunda volta com a cabeça porque faltava ali alguém. Não me digam que o
Norberto Canha não estava?! Não estava como? Se ele nunca falha um encontro
sobre a cidade? Já estou tão habituado a ele estar e a começar a sua
intervenção assim “há três tipos de energia…”, que quando ele não aparece até
fico preocupado.
Vamos então ouvir pequenos
trechos dos participantes. Vamos começar por Emília Martins: “muito obrigado
por terem vindo. Em nome da Orquestra Clássica do Centro, é com muito prazer
que aceitámos esta parceria com o Café Santa Cruz. Aproveito para anunciar que
iremos estrear no próximo Domingo uma nova peça: “Em nome da madrugada em
Coimbra”. Nem de propósito este título pode servir para este nosso primeiro
encontro sobre a cidade e a Baixa.”
Seguiu-se uma bela peça musical
interpretada por quatro excelentes instrumentistas. A soprano Ana Barros,
saindo de dentro do balcão, com a sua espectacular e bem timbrada voz prendeu
toda a assistência. A sala começou a encher e passados minutos nem uma mesa
estava vaga.
Seguiu-se Vitor Marques, o
gerente do café frequentado espiritualmente pelos dois reis da primeira
dinastia, D. Afonso Henriques e seu filho, D. Sancho I, e que moram ao lado, na
Igreja com o mesmo nome da loja hoteleira. Vitor agradeceu a possibilidade de o
seu estabelecimento poder contar com a sensibilidade da “maestrina” Emília
Martins e assim, bem acompanhado por boa música, se poder discutir o que faz
falta nesta zona velha.
A CÂMARA NÃO GOSTA DE MÚSICA?
Quando o Vitor Marques estava a
falar sobre os muitos problemas que urge resolver, como este evento é de cariz
cultural, de certeza absoluta que a rainha de todas as culturas e inculturas do
planeta, Maria José Azevedo e vereadora da Cultura, deveria estar presente na
sala. Engraçado! Não estava. Bom, mas alguém do executivo, para levar projectos
do que ali se iria falar, certamente que estava. Olhei, olhei, e nada. Bom, mas
da oposição e aspirantes à cadeira próxima que se leiloa no próximo ano esses
tinham de estar. Ai, de certeza!, para saberem o que se passa e até poderem
responder a questões e mostrarem que são alternativa ao poder actual. Nada!
Pelos vistos também não alinham em música de câmara. Sei lá, se fosse música de
parlamento talvez fosse mais atractiva.
E QUEM FALOU?
Os assuntos expostos por todos os
membros do painel foram interessantes e, numa certa unanimidade tácita, todos seguiam
na linha de que “vivemos na melhor cidade do mundo”. Foi então que Norberto
Pires agitou a ordem das coisas, e quebrou a louça toda, ao intervir e dizer
que “temos de assumir que a nossa cidade não é a melhor do mundo!”. “Estamos a
falar do ressuscitar de uma coisa que morreu. Devemos sempre falar da Baixa
como uma coisa que morreu! O comércio morreu! Temos de o admitir! Hoje está a chover;
não é possível trazer crianças para a Baixa em dia de chuva. Temos de acabar
com esta conversa de que somos os melhores do mundo. Não somos! Temos de
aprender com os outros. Se calhar é preciso ir aos sítios onde se fazem coisas
novas e copiar. É preciso reinventar!”
E MAIS? E MAIS?
Todos, sem excepção do painel,
falaram bem e disseram o que entendiam. Salientou-se a forma simples e
engraçada de comunicar de Laborinho Lúcio.
Mas, acima de tudo, quem brilhou
verdadeiramente foi a soprano Ana Barros, com a sua extraordinária voz e
interpretação. Pelo olhar do Vitor Marques, acredito que houve momentos em que
temeu pelos cristais do vetusto café. Acredito também que a paz eterna dos dois
primeiros reis de Portugal foi quebrada, nesta quarta-feira, garantidamente não
conseguiram pregar olho. Claro que, como foi por uma boa causa, espera-se que
não reclamem.
PONTOS POSITIVOS
-A magnífica interpretação dos
instrumentistas da Orquestra Clássica do Centro (OCC) e, sobretudo, para a
soprano Ana Barros, que, registe-se, tem uns olhos lindos de fazer ressuscitar
o senhor D. Afonso.
-Salienta-se também esta iniciativa
do Café Santa Cruz e, em parceria, com a OCC. Uma excelente possibilidade de
desmistificar a ideia de que a música de câmara é elitista e destinada a
públicos superiores.
PONTOS NEGATIVOS
-O não ter sido dado a possibilidade
de intervenção ao público presente. Os poucos que intervieram foram indicados
pela mesa, pelo mediador Vitor Marques. Ora num debate é essencial que o acesso
à discussão seja livre por parte de todos os presentes na assistência. Esta
lacuna, infelizmente, nesta Coimbra de falso pedestal, é recorrente. A bem de
uma cidade que queremos melhor é preciso que nestes encontros todos se sintam
iguais, independentemente do estatuto e lugar que ocupam na sociedade. Por que
falei, no fim, com Vitor Marques, sei que foi por inexperiência, e por ter sido
o primeiro, que tal discriminação se verificou. Segundo o próprio, nos próximos
encontros, este deslize não se irá verificar.
-Salienta-se nestes encontros a
falta de pessoas que detêm poder na cidade. Se este poder decisório, de
executivo, não está presente nestes encontros pode-se perguntar: “a quem se
destinam as palavras proferidas? Às pedras milenares? Se eles não estão
presentes, quem conduz até eles as ideias ali discutidas?
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