(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Ele tem mais ou menos a minha idade, cerca de
57 anos. Conheço-o desde a minha adolescência. Foi sempre um electricista
brilhante e um canalizador eficiente. Trata um qualquer quadro eléctrico por tu
e canos de água por familiares. Esteve várias décadas estabelecido por sua
conta e risco na cidade. Fosse lá por que fosse, porque quando um homem cai não
é simplesmente o momento que cede sobre os seus pés. É toda uma conjuntura em
cadeia que se vai avolumando até ao momento fatídico. O que me lembro, assim
rapidamente e que contribuiu para a sua queda, é que uma grande firma dos lados
de Leiria, há mais de uma década, faliu e com ela foram os créditos do meu
amigo em mais de 20 mil contos. Ora, na moeda de hoje, cem mil euros para uma pequeníssima
empresa é uma imensa fortuna e que pode levar ao ruir de toda uma vida assente em pilares, profissional,
familiar e social.
Começou por falhar nas prestações da Segurança Social, no IVA e outros impostos às Finanças e, progressivamente, como areia a esvair-se por entre os dedos, foi perdendo tudo. Os filhos, com passado, presente e futuro de toxicodependência, fizeram o resto e foram destruindo alguma esperança que, porventura, existiria nas longas noites de insónia do meu amigo.
Começou por falhar nas prestações da Segurança Social, no IVA e outros impostos às Finanças e, progressivamente, como areia a esvair-se por entre os dedos, foi perdendo tudo. Os filhos, com passado, presente e futuro de toxicodependência, fizeram o resto e foram destruindo alguma esperança que, porventura, existiria nas longas noites de insónia do meu amigo.
Como a desgraça é como o caruncho na madeira,
vai comendo, comendo, onde entrar desfaz tudo, o meu chegado, para sobreviver, vai cravando um e outro e mais outro que desconhece a sua vivência arrastada. De
tempos-a-tempos calha-me a vez a mim e cá me crava uns euros, embora de pouca monta nunca excedendo as
dezenas porque eu já sei que o retorno é tão improvável quanto a água do rio,
que passa num único momento, e voltar novamente a fazer o mesmo percurso e ao
mesmo local.
Quando tenho um serviço de electricidade mais
complexo, em que me parece implicar técnica e conhecimento, chamo-o. Ontem
liguei-lhe para me verificar uma avaria.
Veio hoje. Subiu acima de um
escadote e começou a desmontar um transformador a precisar de reforma –como eu,
como ele, como tantos portugueses, como Portugal. Reparei que as suas mãos
tremiam, oscilavam mais que um pêndulo de relógio estilo Moret. Quando chegou a uma parte
que implicava olhar com mais precisão, arremessou: “ó Luís, não tens para aí uns óculos graduados de ver ao perto?”. Lá
lhe arranjei um par de lunetas que tinha para aqui perdido e que não farão
falta a quem já teria sido seu utilizador. Aparentemente deu para ele se desenrascar.
Estive com a pergunta na ponta da língua para o interrogar se não tinha os
óculos por incapacidade financeira, por o dinheiro não dar, mas voltei atrás.
Mais que certo seria uma interrogação de retórica e apenas serviria para o
humilhar ainda mais do que ele, presumivelmente, já sentirá nas suas tantas
incapacidades diárias. Mantive a boca fechada. Viu o que tinha a ver. Afinal,
para meu descanso, a coisa era simples. E não implicava uma substituição que
temia. Declarou que precisava apenas de comprar uma pequena peça e que voltava
amanhã. Já de saída e antes de transpor a porta, atirei: precisas de levar
dinheiro? Respondeu que não, e saiu. Passados menos de dez minutos estava de
regresso. Meio a titubear, com as palavras a serem mastigadas numa boca
maltratada e que já viu melhores dias, como se dar a explicação que se seguia
fosse mais difícil de entabular do que falar com o Presidente da República, aos
solavancos e puxando de um papel, muito a custo, com os dentes a rilharem uns
nos outros, proferiu: “desculpa lá! Tenho
muita vergonha! Vês esta receita médica? Ora olha para o custo do medicamento.
O preço é de 50 euros! Não tenho dinheiro que chegue! Por isso não o comprei.
Já o deveria ter tomado há três dias! Desenrascas-me 20 euros?”
Sem comentários:
Enviar um comentário