Conheci
o Victor Manuel Lucas pela primeira vez há cerca de uma década aqui
na Baixa da cidade. Fosse ou não pela sua permanente simplicidade e sorriso extemporâneo no rosto, que se colam aos seus gestos como
bilhete de identidade, a verdade é que depressa desenvolvemos uma
amizade estável.
Em
2012, sendo eu colaborador semanal do jornal O Despertar, colocou-se
a hipótese de tentar reabilitar a saudosa personagem do ardina –
figura típica que, com a sua voz clara e projectada na distância
para se fazer ouvir, atravessando os pretéritos séculos XIX, no
final, e até até ao terceiro quartel do XX, percorria as ruas das
urbes a vender periódicos de informação. Sempre com um pregão
pronto em distinção ao nome do jornal ou à notícia que marcava o
dia, a denominada “Caixa Alta”,
título em maiúsculas que sinalizava o cabeçalho da edição da
folha, do matutino, vespertino e semanário, estes personagens eram
vistos de forma bipolar pela comunidade. Por um lado, pela utilidade
do seu ofício e de simpático relacionamento pessoal, facilmente se
tornavam benquistos e parte integrante da paisagem urbana. Por outro, por serem
agregados do último degrau societário, pobres, na maioria das
vezes, sem grande inteligência e incapazes de irem além-conhecimento do produto que vendiam, por vezes carismáticos onde a senilidade era patente, eram completamente desprezados e discriminados.
Embora tratados com paternalismo, a subestimação estava sempre presente num
carinho frio e calculista que recebiam - acontecia o mesmo com as
profissões de engraxador, varredor de rua, de recolha do lixo e a de coveiro.
É
certo que, assim podemos considerar, houve excepções, nomeadamente
com Raul dos Reis Carvalheira, mais conhecido por “Taxeira”,
que, pelo seu mérito e reconhecimento pela Academia Coimbrã, tem
direito a figurar na toponímia da Lusa Atenas -sobretudo por obra e
graça do falecido Mário Nunes, vereador da Cultura da autarquia
conimbricense entre 2001 e 2009.
Voltando
a 2012, uma coisa é sonhar em reabilitar um mister
quando é apenas bem visto pela sociedade, outra é conseguir
realizar o desejo quando, no outro extremo, o anátema de
desgraçadinho está ainda bem presente na memória dos mais
velhos. Como se calcula, foi muito difícil conseguir alguém para
o lugar. Já cansado de falar com pessoas, e apreender que nem uma
aceitava o frete mesmo que pago a preço de ouro, para, fardado de
ardina, distribuir O Despertar na Baixa e na Alta, foi então que me
lembrei do Victor Lucas. À espera de mais um “nega”,
meio-acanhado, falei-lhe da ideia de o ver no renascido lugar do
ardina da saudade. Sem ter em conta o esforço e pouca remuneração,
para meu completo espanto, com redobrado entusiasmo, aceitou logo o
encargo com um sorriso estampado no rosto. Com este assentimento
imediato ganhou para sempre a minha admiração sincera. Durante
cerca de cinco anos, e até há pouco, pudemos todos beneficiar do
seu desempenho a favor da cultura popular.
Ao
longo desta última década, já o vi a pintar casas, sendo
auto-didacta, já me reparou vários relógios antigos,
já tomei conta da sua competência para fazer elementos manuais para
qualquer máquina mecânica, recupera e restaura facilmente peças de
belas-artes. Para além disso, já o vi várias vezes a vender
velharias em feiras da região, durante os meses de verão andou a
limpar matas e, para surpreender ainda mais, já lhe adquiri várias
telas pintadas pela sua mão. Em suma é um “self made man”,
um homem dos sete ofícios, o chamado obreiro português, disponível,
desenrascado e trabalhador, tão identificativo entre nós e além
fronteiras, infelizmente em acelerado desaparecimento.
Não
admira, portanto,
que
o
homem de quem se fala merecesse,
por direito próprio, um lugar cativo na galeria de "Rostos Nossos (Des)conhecidos”.
Por tudo isto e outras funções que virão ainda a serem desempenhadas, não foi com completa surpresa ver há dias o Victor Lucas a assar e a vender castanhas na Praça 8 de Maio.
Por tudo isto e outras funções que virão ainda a serem desempenhadas, não foi com completa surpresa ver há dias o Victor Lucas a assar e a vender castanhas na Praça 8 de Maio.
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