quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

2 – HISTÓRIAS AO VIRAR DA ESQUINA: O HOMEM DOS SETE OFÍCIOS







Conheci o Victor Manuel Lucas pela primeira vez há cerca de uma década aqui na Baixa da cidade. Fosse ou não pela sua permanente simplicidade e sorriso extemporâneo no rosto, que se colam aos seus gestos como bilhete de identidade, a verdade é que depressa desenvolvemos uma amizade estável.
Em 2012, sendo eu colaborador semanal do jornal O Despertar, colocou-se a hipótese de tentar reabilitar a saudosa personagem do ardina – figura típica que, com a sua voz clara e projectada na distância para se fazer ouvir, atravessando os pretéritos séculos XIX, no final, e até até ao terceiro quartel do XX, percorria as ruas das urbes a vender periódicos de informação. Sempre com um pregão pronto em distinção ao nome do jornal ou à notícia que marcava o dia, a denominada “Caixa Alta”, título em maiúsculas que sinalizava o cabeçalho da edição da folha, do matutino, vespertino e semanário, estes personagens eram vistos de forma bipolar pela comunidade. Por um lado, pela utilidade do seu ofício e de simpático relacionamento pessoal, facilmente se tornavam benquistos e parte integrante da paisagem urbana. Por outro, por serem agregados do último degrau societário, pobres, na maioria das vezes, sem grande inteligência e incapazes de irem além-conhecimento do produto que vendiam, por vezes carismáticos onde a senilidade era patente, eram completamente desprezados e discriminados. Embora tratados com paternalismo, a subestimação estava sempre presente num carinho frio e calculista que recebiam - acontecia o mesmo com as profissões de engraxador, varredor de rua, de recolha do lixo e a de coveiro.
É certo que, assim podemos considerar, houve excepções, nomeadamente com Raul dos Reis Carvalheira, mais conhecido por “Taxeira”, que, pelo seu mérito e reconhecimento pela Academia Coimbrã, tem direito a figurar na toponímia da Lusa Atenas -sobretudo por obra e graça do falecido Mário Nunes, vereador da Cultura da autarquia conimbricense entre 2001 e 2009.
Voltando a 2012, uma coisa é sonhar em reabilitar um mister quando é apenas bem visto pela sociedade, outra é conseguir realizar o desejo quando, no outro extremo, o anátema de desgraçadinho está ainda bem presente na memória dos mais velhos. Como se calcula, foi muito difícil conseguir alguém para o lugar. Já cansado de falar com pessoas, e apreender que nem uma aceitava o frete mesmo que pago a preço de ouro, para, fardado de ardina, distribuir O Despertar na Baixa e na Alta, foi então que me lembrei do Victor Lucas. À espera de mais um “nega”, meio-acanhado, falei-lhe da ideia de o ver no renascido lugar do ardina da saudade. Sem ter em conta o esforço e pouca remuneração, para meu completo espanto, com redobrado entusiasmo, aceitou logo o encargo com um sorriso estampado no rosto. Com este assentimento imediato ganhou para sempre a minha admiração sincera. Durante cerca de cinco anos, e até há pouco, pudemos todos beneficiar do seu desempenho a favor da cultura popular.
Ao longo desta última década, já o vi a pintar casas, sendo auto-didacta, já me reparou vários relógios antigos, já tomei conta da sua competência para fazer elementos manuais para qualquer máquina mecânica, recupera e restaura facilmente peças de belas-artes. Para além disso, já o vi várias vezes a vender velharias em feiras da região, durante os meses de verão andou a limpar matas e, para surpreender ainda mais, já lhe adquiri várias telas pintadas pela sua mão. Em suma é um “self made man”, um homem dos sete ofícios, o chamado obreiro português, disponível, desenrascado e trabalhador, tão identificativo entre nós e além fronteiras, infelizmente em acelerado desaparecimento.
Não admira, portanto, que o homem de quem se fala merecesse, por direito próprio, um lugar cativo na galeria de "Rostos Nossos (Des)conhecidos”.
Por tudo isto e outras funções que virão ainda a serem desempenhadas, não foi com completa surpresa ver há dias o Victor Lucas a assar e a vender castanhas na Praça 8 de Maio.



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